Redução no orçamento em centros de formação como Emesp e Conservatório de Tatuí põe em risco o sonho de estudantes
por Ana Ferraz — publicado 21/06/2015 03h06
Heloísa Bortz
Para continuar, a Camerata Aberta vai trabalhar por cachê
CartaCapital - Gabriel andré Márquez tinha 4 anos quando viu um piano pela primeira vez. Apaixonou-se pelo som e manifestou o desejo de se tornar pianista. A convicção e o entusiasmo foram tamanhos que Florangel Márquez, sem condição financeira de proporcionar o sonho ao filho, recorreu à ONG Músicos do Futuro, em Taboão da Serra, onde começou a trajetória do garoto.
Animada ao ver o irmão aprender as primeiras notas, Camila, de 3 anos, também quis estudar. Transcorridos sete anos, André e Camila são alunos da Escola de Música do Estado de São Paulo (Emesp), referência no ensino, cujo excepcional projeto pedagógico contempla a meritocracia.
Aos 12 anos, Gabriel enfrenta uma grande frustração. Foi aprovado no curso preparatório de violino, deseja tocar outro instrumento além do piano, mas não será chamado, pois a vaga não existe mais. A irmã, que se dedica ao violino e queria complementar os estudos com piano, está na mesma situação. “Além disso, ela sentiu muito a perda de duas professoras, a de violino, que em pouco tempo fez um trabalho maravilhoso, e a de coral. E ambos perderam a bolsa auxílio-transporte.”
A família mora na Estrada de Campo Limpo, zona sul de São Paulo, e, para chegar à Emesp, no Centro, depende de ônibus e metrô. Gabriel frequenta a aula duas vezes por semana, Camila, três. “A música capaz de transformar o mundo não é valorizada aqui”, desabafa a venezuelana Florangel, inconformada com o corte que eliminou 200 das 1,5 mil vagas da instituição fundada em 1989 e considerada padrão na América Latina. “Não sabemos o que vai acontecer. O secretário de Cultura fala que o corte ocorreu para manter a qualidade. Não é possível que alguém pense assim, pois a maioria não tem condições de pagar escola.”
“Estamos sofrendo os efeitos de uma recessão econômica que atinge todos os setores do País”, afirma Marcelo Mattos Araújo, secretário de Cultura, em nota a CartaCapital. “A secretaria continua com um investimento forte e tem um histórico de 20 anos de fortalecimento do setor que nos permitiu garantir a continuidade de todos os programas estaduais, mesmo com esse quadro.” De acordo com Araújo, a maior parte da redução deu-se em áreas administrativas.
“Com isso, o Conservatório de Tatuí mantém integralmente seus alunos e cursos, além das bolsas para os estudantes que participam de grupos pedagógicos. E a Emesp Tom Jobim manteve todos os alunos que estavam matriculados, sem prejuízo às atividades pedagógicas.”
Na Fundação Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, o orçamento foi reduzido em 10 milhões de reais e houve 35 funcionários demitidos, mas os grupos artísticos não sofreram alteração. “A Temporada Osesp será mantida na íntegra e os projetos educacionais também serão preservados”, informa a Fundação Osesp, em nota.
O diretor-presidente da Associação dos Profissionais da Osesp, Jefferson Collacico, confirma que não houve mudanças na orquestra, mas lamenta as demissões. “Nós nos solidarizamos com os colegas de outras áreas que perderam suas posições. Alguns estavam conosco havia mais de uma década, eram parte da ‘família’.”
Se todo corte por si é penoso e passível de questionamento, quando o alvo são os centros de formação, berçários de futuros talentos, a situação ganha outros contornos. “São 200 vagas de ensino a menos em uma cidade que tem demanda para alguns milhares de vagas a mais. É lamentável que não exista ainda um fundo de reserva para cobrir essas necessidades justamente em momentos de crise ou de depressão econômica”, avalia Nelson Rubens Kunze, músico e fundador da revista Concerto.
“Os cortes significam um retrocesso e um grande desgaste para esse modelo de parceria público-privada, que considero a maior conquista da gestão pública cultural dos últimos 20 anos”, diz, ao se referir às Organizações Sociais que administram recursos públicos.
Erik Ekström, de 25 anos, aluno do último ano de canto popular na Emesp, constata que o clima pesou na instituição. “Temos medo de que fechem a escola. São poucas as que oferecem ensino de qualidade gratuito.” Com a saída de sua professora, o ciclo de aprendizado foi quebrado e será preciso se adaptar a outro profissional. Segundo Ekström, integrante do grêmio, nas manifestações organizadas foi dada ênfase à “injustiça com os que têm pouco”.
Julia Rodrigues Simões, 19 anos, aluna de violão erudito, presenciou a demissão de 25 professores e 40 funcionários. “Foi horrível. Muitos alunos supertalentosos perderam o professor e a bolsa auxílio-transporte, concedida aos que cursam o primeiro e segundo ciclos, e não têm como pagar a condução, pois moram em cidades como Jundiaí, Piracicaba ou até fora do estado. Um estudante de flauta deixou de frequentar a escola porque não tem dinheiro para a locomoção. É um absurdo, vamos continuar a protestar.”
Profissionais da Emesp que preferem manter o anonimato revelam que o anúncio de redução de verba foi feito em março e até o fim de abril houve conversas com a secretaria. “O máximo que conseguimos foi negociar um corte menor. É triste saber que esses estudantes não terão oportunidade de conviver com grandes profissionais. Sabemos a diferença que isso faz na vida dessas pessoas”, lamenta um coordenador.
“Há uma demanda enorme de jovens e adultos que nos procuram não apenas para iniciar os estudos musicais, mas para o aprimoramento de práticas interpretativas e de criação que a escola oferece”, atesta Rodrigo Lima, professor de Composição Musical. “Alguns dos professores que perdemos tinham mais de 20 anos dedicados à escola. E o corte atingiu bolsas auxílio-aprendizado, reduzidas de 1.134 para 1.082 reais, e a bolsa de estudos dos Grupos Jovens, orquestra, banda sinfônica e coral, que caiu de 680,53 para 567,11 reais.”
Para o professor, a indignação demonstrada por pais e alunos deveria se estender a toda a sociedade: “O estudo da música vai além de aprender um instrumento ou compor, ele tem papel importante na formação humana, é um bem imprescindível”. Em carta coletiva a ser endereçada ao governador Geraldo Alckmin e ao secretário de Cultura, professores da Emesp reforçam o compromisso da instituição de ensino público de “atender todos que nos procuram”, afirmam que dos 1,3 mil alunos “80% pertencem às classes menos favorecidas”, questionam o “legado de tantos anos de gestão” e definem o sentimento na instituição: “luto”.
Na rasteira do vendaval na Emesp, a Camerata Aberta sentiu o golpe, mas resistiu. O premiado grupo de professores da instituição que desde 2010 promove a música contemporânea, cujo fim chegou a ser anunciado, decidiu continuar. “Foi um baque, mas levantamos, fizemos reuniões e vamos mudar a forma de trabalhar”, diz Paulo Zuben, diretor artístico-pedagógico. “Os 15 músicos vão trabalhar por cachê. É um retrocesso, pois perdem estabilidade, garantia de salário por CLT, férias, quantidade fixa de concertos.” Zuben lamenta em especial o corte na área de formação. “Tatuí e Emesp são as escolas que mais formam músicos profissionais. Atendemos alunos majoritariamente provenientes de programas sociais, com poucas condições para pagar escolas. Nossa preocupação maior é com o futuro.”
O Conservatório de Tatuí, que atende 2,5 mil estudantes em 47 cursos, e é sinônimo de excelência, perdeu 28 professores. Fontes internas revelam que o abalo maior deu-se nos setores artístico e pedagógico. Em elogiado sistema no qual alunos bolsistas tocam com professores em grupos como a Big Band, a Orquestra e a Banda Sinfônica, o aprendizado prático sofrerá reveses e o repertório terá de ser readequado. Tatuí costuma promover em média quatro encontros internacionais de diversos instrumentos. Neste ano, ainda não há anúncio de eventos do tipo.