|
O ministro Gilmar Mendes |
O legado de nossa Corte Suprema, transmitido, continuamente, de geração a geração, a todos os Juízes que transpuseram os seus umbrais, é imenso e é indestrutível, pois desse legado resulta a lição — tão cuidadosamente preservada nas decisões deste Tribunal — de que o respeito à ordem constitucional legítima, a proteção das liberdades e a repulsa ao arbítrio qualificam-se como fins superiores que devem inspirar a conduta daqueles que pretendem construir e consolidar, no Brasil, o Estado democrático de Direito.
A data em que o eminente Ministro GILMAR MENDES completa 20 anos de judicatura exercida com altíssima competência e qualificadíssima atuação representa um momento de confirmação de nossa fé nos valores consagrados pela Constituição, além de estimular reflexões sobre o significado institucional, para a vida de nosso País, do Poder Judiciário, que não pode despojar-se da condição de fiel depositário da permanente confiança do povo brasileiro, que deseja preservar o sentido democrático de suas instituições, e, mais do que nunca, deseja ver respeitada, em plenitude, por todos os agentes e Poderes do Estado, a supremacia da Constituição da República e a integridade dos valores ético-jurídicos e político-sociais que ela consagra na imperatividade de seus comandos.
|
O ministro Celso de Mello |
A presença do Ministro GILMAR MENDES, um dos mais notáveis Juízes do Supremo Tribunal Federal e jurista de incomparável valor acadêmico, autor de brilhantes formulações doutrinárias e de decisões históricas que marcarão, para sempre, a sua luminosa passagem pela Corte Suprema do Brasil, revela que, pelo desempenho primoroso de suas atribuições, esta Suprema Corte — que não se curva a ninguém nem tolera a prepotência dos governantes nem admite os excessos e abusos que emanam de qualquer esfera dos Poderes da República — continuará a desempenhar as suas funções institucionais e a exercer a jurisdição que lhe é inerente de modo compatível com os estritos limites que lhe traçou a própria Constituição.
Ao Ministro GILMAR MENDES, eminente Decano do Supremo Tribunal Federal, não lhe faltam títulos nem competência e qualificação, para formular soluções, adotar decisões e implementar medidas que efetivamente permitam superar os gravíssimos problemas com que se defrontam, hoje, a sociedade brasileira e o sistema judiciário nacional, especialmente em relação à questão da preservação da ordem democrática e da prática legítima do poder estatal.
Ninguém ignora, porque de conhecimento geral, os altos predicados do eminente Ministro GILMAR MENDES como grande jurista e doutrinador constitucional, revelados ao longo de brilhante carreira acadêmica como professor universitário e notável pensador do Direito, responsável, nessa condição, pela formulação teórica das bases doutrinárias que dão suporte, no âmbito legislativo e na esfera jurisprudencial, ao processo de construção e aperfeiçoamento dos mecanismos de controle de constitucionalidade, que representam, hoje, não apenas no Brasil mas no plano do direito comparado, um dos mais complexos e engenhosos sistemas de fiscalização jurisdicional de constitucionalidade das leis e atos do Poder Público.
Essa especial inclinação e esse particular interesse intelectual pelos processos constitucionais já se mostravam presentes nas anteriores atividades profissionais do eminente Ministro GILMAR MENDES, como Procurador da República, como Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República e, finalmente, como Advogado-Geral da União.
O Ministro GILMAR MENDES teve ativa participação em Comissões, que, instituídas para deliberar sobre matéria constitucional, elaboraram estudos e anteprojetos de lei referentes ao processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental, que serviram de base à aprovação, pelo Congresso Nacional, de proposições legislativas que se transformaram nas importantíssimas e vigentes Leis nº 9.868/99 e nº 9.882/99.
Mais do que isso, o Ministro GILMAR MENDES — que tem desenvolvido intensa atividade docente (como professor, orientador de mestrado e de monografias, membro de bancas examinadoras de dissertação de mestrado e de teses de doutorado), tanto quanto atividades acadêmicas (como membro de importantes instituições, como a Academia de Direito Internacional e Economia, a Academia Brasileira de Letras Jurídicas, a Academia Mato-grossense de Letras, dentre outras), a que se soma uma vasta produção intelectual na área jurídica, como estudos sobre teoria da legislação, interpretação constitucional, reforma constitucional e reforma do Judiciário, além de seus importantes livros sobre controle de constitucionalidade, jurisdição constitucional, direitos fundamentais, arguição de descumprimento de preceito fundamental e, com especial destaque, o seu valiosíssimo "Curso de Direito Constitucional", este em coautoria com o Professor Paulo Gustavo Gonet Branco — também teve decisiva participação, ao lado de eminentes juristas, como os eminentes Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira e Ruy Rosado de Aguiar, na elaboração de propostas de emenda constitucional e de projetos de lei que se converteram, posteriormente, em Emendas à Constituição (sobre a ação declaratória de constitucionalidade e a instituição dos Juizados Especiais Federais) e em diplomas legislativos sobre outros temas de alto relevo jurídico e social.
Defensor da Constituição — e seu maior guardião (porque é da Corte Suprema, por expressa delegação da Assembleia Nacional Constituinte, "o monopólio da última palavra" em matéria de interpretação constitucional) —, o Supremo Tribunal Federal dela extrai os seus poderes, nela encontra a gênese de sua criação e dela faz derivar, também, a legitimidade e a autoridade inquestionáveis de suas decisões, que a todos os Poderes e instituições obrigam, a todas as pessoas e formações sociais vinculam, porque representam, na imperatividade de que se revestem tais julgamentos, a manifestação mais expressiva da hegemonia e do primado absolutos da ordem constitucional.
Dessa relevante função institucional do Supremo Tribunal Federal — certamente a mais significativa de todas quantas se incluem na esfera de sua competência e de seus poderes — tem nítida percepção o eminente Ministro GILMAR MENDES, cuja atuação nesta Corte, ao longo de 20 (vinte) anos de uma brilhante judicatura, é bem um fato revelador dessa grave preocupação que lhe inquieta, permanentemente, o espírito de magistrado e de cultor responsável do Direito.
A admiração dos seus pares, o respeito de todos os seus jurisdicionados e a seriedade de sua erudita criação intelectual: eis aí as virtudes de um verdadeiro e exemplar Magistrado que honra a Suprema Corte a que pertence e que é fiel, no desempenho do seu cargo judiciário, às mais caras tradições do Augusto Supremo Tribunal Federal.
Tenho plena convicção de que o Supremo Tribunal Federal – sob o permanente e qualificado estímulo intelectual do Ministro GILMAR MENDES — continuará a aprofundar a percepção de que precisa, cada vez mais, desenvolver e consolidar uma consciência crítica sobre a realidade social e as práticas institucionais deste País, em ordem a viabilizar, no tema sensível dos direitos humanos e da democracia constitucional, uma práxis libertadora, que abra caminho e intensifique o sentido real das garantias básicas que amparam e resguardam os cidadãos, notadamente aqueles que compõem os grupos vulneráveis, protegendo-os da opressão do poder e do estigma da exclusão social e jurídica.
Por isso mesmo, é pleno de significação este momento em que o eminente Ministro GILMAR MENDES, que é o primeiro filho do grande Estado de Mato Grosso, investido no alto cargo de Juiz da Corte Suprema do Brasil, completa 20 anos de primorosa e brilhante atuação como magistrado do Supremo Tribunal Federal.
Com o Ministro GILMAR MENDES, eminente Decano da Suprema Corte brasileira, os cidadãos poderão ter certeza plena e absoluta de que o primado da Constituição será sempre respeitado, a significar, na fórmula política do regime democrático, que nenhum dos Poderes do Estado está acima da Constituição e das leis de nosso País, pois, como ninguém o ignora, nenhum órgão do Estado, como a Presidência da República, v.g., é imune ao império das leis e à força hierárquico-normativa (e subordinante) da Lei Fundamental da República.
Nada mais nocivo, perigoso e ilegítimo do que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos pontos que se mostrarem convenientes aos desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses maiores da República.
A crescente judicialização das relações políticas em nosso País resulta da expressiva ampliação das funções institucionais conferidas ao Judiciário pela Assembleia Nacional Constituinte, que converteu os juízes e os Tribunais em árbitros dos conflitos que se registram na arena política, conferindo à instituição judiciária um protagonismo que deriva naturalmente do papel que se lhe cometeu em matéria de jurisdição constitucional, como o revelam as inúmeras ações diretas, ações declaratórias de constitucionalidade e arguições de descumprimento de preceitos fundamentais ajuizadas pelo Presidente da República, pelos Governadores de Estado, pelos partidos políticos, por confederações sindicais e entidades de classe de âmbito nacional e, ainda, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, agora incorporados à "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição", o que atribui — considerada essa visão pluralística do processo de controle de constitucionalidade — ampla legitimidade democrática aos julgamentos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal.
Torna-se imperioso reconhecer que o regime democrático, analisado na perspectiva das delicadas relações entre o Poder e o Direito, não terá condições de subsistir, quando as instituições políticas do Estado falharem em seu dever de respeitar a Constituição e as leis da República, pois, sob esse sistema de governo, não poderá jamais prevalecer a vontade de uma só pessoa, de um só estamento, de um só grupo ou, ainda, de uma só instituição.
Em conclusão: a presença do Ministro GILMAR MENDES no Supremo Tribunal Federal, que ostenta reconhecida condição de magistrado em permanente defesa da ordem constitucional, traduzirá, sempre, consideradas a vocação protetiva e a segurança jurídica que emanam de seus sólidos e brilhantes votos, grave advertência aos profanadores do Estado Democrático de direito e àqueles que ousem transgredir o seu dever de subordinação e de respeito ao estatuto supremo que rege a vida institucional de nosso País.
Celso de Mello, tatuiano, é ministro aposentado e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (1997-1999).
Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2022, 6h32