PRISÃO INCONGRUENTE
É contraditório manter preso alguém que, se condenado, sofrerá a execução da pena em regime aberto — caso a sentença não substitua a pena de prisão por penas meramente restritivas de direitos. Esse foi um dos argumentos utilizados pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, ao conceder liberdade provisória, sem a necessidade do pagamento de fiança, a um homem preso em flagrante por furto simples.
Na ação, a Defensoria Pública de São Paulo alegou que a manutenção da prisão do acusado acontece apenas pelo fato de o acusado ser pobre, uma vez que ele não tem condições de pagar a fiança. A Defensoria narra que a fiança foi estipulada inicialmente em R$ 1,5 mil. Porém, o juiz decidiu elevar esse valor para 20 salários mínimos (R$ 17,6 mil), alegando que este valor servirá “como garantia real para assegurar que o investigado, em liberdade, não venha a praticar atos criminosos no transcorrer do processo”
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Gervásio Baptista -SCO/STF
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Segundo Celso de Mello, não há qualquer importância o fato de o acusado responder a outros processos.
No Tribunal de Justiça de São Paulo o Habeas Corpus foi negado. Conforme decisão da 14ª Câmara de Direito Criminal, a gravidade do furto somada ao fato de o homem já ter instaurado contra si outros dois processos, justificam a necessidade da fiança. "Tais circunstâncias dotam a hipótese de particularidade que, de fato, impõe cautela maior do que a liberdade provisória sem fiança ou a substituição da prisão por medida cautelar diversa", diz o acórdão do TJ-SP.
Inconformada, a Defensoria Pública ingressou com Habeas Corpus no STF, tendo o pedido de medida cautelar atendido pelo ministro Celso de Mello, que criticou a decisão da corte paulista. Segundo o ministro, não há qualquer importância o fato de o acusado já responder a outros processos. "E a razão é uma só: ninguém pode ser despojado do direito fundamental de ser considerado inocente até que sobrevenha o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", afirmou o ministro.
"A mera existência de inquéritos policiais em curso e a tramitação de processos penais em juízo não autorizam que se atribua a qualquer pessoa, só por isso, a condição de portadora de maus antecedentes nem permitem que se lhe imponha medidas restritivas de direitos ou supressivas da liberdade", registrou Celso de Mello em sua decisão.
Além disso, ao determinar a liberdade provisória do acusado, o ministro considerou que não há razão em manter na prisão alguém que, além de impossibilitado de prestar fiança por ser pobre, teve o pedido de prisão preventiva considerado inviável, diante da ausência dos requisitos necessários.
Celso de Mello, também observou que na pior das hipóteses, caso seja condenado, o homem sofrerá a execução da pena em regime aberto, isso se o juiz não optar por substituir a pena de prisão por penas meramente restritivas de direitos.
"Consideradas as circunstâncias do caso concreto — possibilidade de o paciente, se condenado, ter acesso ao regime aberto ou, então, de sofrer pena restritiva de direitos —, torna-se incongruente, quando não cruel, a efetivação de sua prisão cautelar e consequente recolhimento prisional ao sistema penitenciário brasileiro, que foi qualificado pelo Supremo Tribunal Federal, em importante julgamento plenário (ADPF 347), como expressão perversa de um visível e lamentável 'estado de coisas inconstitucional'", concluiu o ministro.
Omissão do Poder Público
Na decisão, o ministro Celso de Mello voltou a criticar o sistema prisional brasileiro que, segundo ele, tem-se caracterizado por uma situação de crônico desaparelhamento material, "hipótese de múltiplas ofensas à Constituição, em clara atestação da inércia, do descuido, da indiferença e da irresponsabilidade do Poder Público".
Conforme o ministro, foi devido a essa omissão do Poder Público que levou o Supremo a reconhecer existir no Brasil, um claro e indisfarçável estado de coisas inconstitucional. "O quadro de distorções revelado pelo clamoroso estado de anomalia de nosso sistema penitenciário desfigura, compromete e subverte, de modo grave, a própria função de que se acha impregnada a execução da pena, que se destina — segundo determinação da Lei de Execução Penal — 'a proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado'", diz o ministro.
Segundo Celso de Mello, quem ingressa no sistema prisional sofre punição que a própria Constituição da República proíbe e repudia, "pois a omissão estatal na adoção de providências que viabilizem a justa execução da pena ou o respeito efetivo ao ordenamento positivo cria situações anômalas e lesivas à integridade de direitos fundamentais do prisioneiro, culminando por subtrair-lhe o direito — de que não pode ser despojado — ao tratamento digno".
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Tadeu Rover é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 23 de junho de 2016, 12h08