BELO DESEMPENHO
TYRANNUS MELANCHOLICUS - A experiência dessa cidade de 116 mil habitantes mostra a importância de um bom equipamento cultural e a necessidade de ele estar atrelado a outras atividades, sobretudo em escolas públicas.
A pequena Tatuí, a pouco menos de 130 quilômetros de São Paulo, não é exatamente destaque em termos socioeconômicos. Dos 75 municípios paulistas com mais de 100 mil habitantes, é o 65º pior no ranking do IDH. Tem o menor Índice de Desenvolvimento Humano entre as 21 cidades que participaram da pesquisa Hábitos Culturais dos Paulistas, realizada pela consultoria JLeiva Cultura & Esporte e pelo Datafolha. No entanto, é a que exibe, nesse levantamento, as maiores frequências a atividades culturais.
A explicação para esse desempenho notável parece estar num coração musical muito bem aproveitado por outras instituições, e fortalecido por uma longa história de disseminação da prática de música entre várias camadas sociais.
O órgão pulsante, encravado no centro de Tatuí, é o Conservatório Dramático e Musical “Dr. Carlos de Campos”, instituição estadual fundada em 1954 e autodenominada a maior do gênero na América Latina. De suas salas saem instrumentistas para algumas das mais importantes orquestras do país e do mundo. Não à toa, na pesquisa do Datafolha é o município com maior frequência a concertos: 21% dos moradores disseram ter ido a um evento desse tipo nos 12 meses anteriores à sondagem – a média das 21 cidades é 12%.
Hábitos Culturais – Tatuí
Não é difícil entender a importância desse equipamento cultural para Tatuí. O conservatório, gerido por uma organização social (OS), abriga cerca de três mil pessoas, entre alunos, professores e funcionários. “Se calcularmos quatro familiares por pessoa, estamos falando de 12 mil pessoas, coisa de 10% da população do município, que têm o conservatório em seu dia a dia, fora apresentações musicais e de artes cênicas”, afirma o diretor executivo do local, Henrique Dourado. Proporcionalmente, seria o mesmo que o Masp ou o Museu do Ipiranga, por exemplo, envolvessem um milhão de pessoas em São Paulo.
A presença de uma instituição com tal qualidade e tal dimensão ajuda a fomentar a cultura local, mas não basta. “A difusão de cultura é tarefa complexa: depende do relacionamento e envolvimento de diversos parceiros, como o poder público e a comunidade envolvida e impactada”, pondera o professor Fausto Gentile, coordenador da área de Desenvolvimento Social do Centro Universitário SENACJundiaí, que estuda as relações entre educação e música.
Há sinais de que, no município paulista vizinho de Sorocaba, a ponte entre o equipamento cultural e a população tem sido feita – o que está longe de significar que é perfeita. O conservatório promove muitas atividades gratuitas. Na última semana de novembro, por exemplo, houve cerca de 140 apresentações de grupos de câmara ligados à instituição, todas com entrada franca.
O número de pessoas que comparecem aos espetáculos, porém, não é significativo, avalia o professor Eduardo Augusto de Almeida, que rege duas orquestras do conservatório. “São quase sempre as mesmas pessoas que comparecem aos eventos gratuitos. Muitas vezes, são os músicos ou os pais deles, o perfil não muda muito.”
A diversidade de público aumenta muito quando, em associação com a prefeitura, são feitas séries de concertos em coretos de praças de Tatuí. “Os eventos são sempre cheios”, conta Almeida. Além disso, há um intercâmbio entre o conservatório e escolas públicas: os alunos são levados a atividades pedagógicas no local e professores da instituição são convidados a participar de atividades nas escolas, afirma o diretor de Cultura e Desenvolvimento Turístico da Prefeitura, Jorge Risek.
O conservatório de Tatuí não é só de música, mas também de artes dramáticas – embora nessa área os números da cidade (29%) sejam parecidos com os da média (28%) detectada no trabalho do Datafolha. “Além do núcleo do conservatório, há outros nove grupos de teatro independentes”, lembra Rizek, ressaltando que vários deles fazem apresentações em escolas públicas.
A combinação de políticas públicas com iniciativas privadas acaba levando a uma agenda repleta de eventos culturais. “Todo dia tem algo acontecendo em Tatuí. Há vários espaços de eventos além do conservatório. Temos um CEU, um centro cultural e duas escolas públicas com auditórios. A programação farta cria o hábito”, diz Rizek.
Na área da música, o exemplo mais vistoso de iniciativa privada era a Orquestra de Metais Lyra Tatuí, criada em 2002 pelo maestro Adalto Soares e que arregimentava músicos entre estudantes de escolas estaduais e municipais. “A orquestra talvez seja tão importante quanto o conservatório para pessoas de classes mais baixas, até porque sempre trabalha com jovens em situação de maior vulnerabilidade e com apresentações públicas”, diz a professora de música Beatriz Salles, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O grupo, que chegou a fazer excursões no exterior, terminou neste ano, quando Soares mudou-se da cidade.
Outra atração cultural que mantém atividades com escolas públicas é o Museu Paulo Setúbal, que conta a história do município. “Há várias exposições itinerantes, às quais sempre levamos os alunos”, afirma o diretor de Cultura. E aqui o efeito é tão marcante quanto no caso da música: Tatuí apresenta a maior frequência a museus entre todos 21 os municípios pesquisados pelo Datafolha: 36%, ante uma média de 26%. Na capital, a proporção é de 29%.
A única atividade cultural na qual Tatuí ficou abaixo da média foi cinema: 48%, contra 60%. A cidade tem duas salas de exibição.
Tradição cultural
A experiência dessa cidade de 116 mil habitantes mostra a importância de um bom equipamento cultural e a necessidade de ele estar atrelado a outras atividades, sobretudo em escolas públicas. Mas a efervescência de Tatuí, sobretudo na área da música, precede a instalação do conservatório. “A cultura em Tatuí não é forte por causa do conservatório, mas sim o conservatório se instalou aqui por causa da cultura”, afirma o professor Eduardo Almeida.
Na dissertação de mestrado O Conservatório Dramático e Musical "Dr. Carlos de Campos" de Tatuí como difusor cultural, o músico Pedro Delarole conta que os primeiros instrumentos chegaram à cidade pelas mãos de imigrantes europeus que vieram trabalhar na Fábrica de Ferro Ipanema, que funcionou durante o século XIX.
Para Delarole, a música acabou tendo um papel de aglutinadora social em um município que já havia alforriado todos os seus escravos antes mesmo da abolição de 1888. Fotos antigas que constam da dissertação defendida por ele na USP mostram grupos nos quais se misturam homens, mulheres e crianças, brancos e negros.
Gentile, do Centro Universitário SENAC Jundiaí, avalia que essa bagagem deixa claro que não basta colocar uma instituição de renome como o conservatório para impulsionar a cultura. “A história de formação do Conservatório de Tatuí tem um grande enlace com a cidade em tempos primórdios. Como iniciar esta relação é o desafio em outras localidades que queiram tomar o município como modelo”, finaliza.
Fonte: Tyrannus Melancholicus