domingo, 4 de agosto de 2024

Patrimônio cultural na faixa: respeitar o pedestre é cult

Allan Carlos Moreira Magalhães, no Consultor Jurídico

2 de agosto de 2024, 21h18

A faixa de pedestre surge com a necessidade de prevenir acidentes, pois a vida cotidiana nas cidades estava em plena aceleração nos idos dos anos 1940 com a disseminação dos carros movidos a combustão. Muitas foram as estratégias adotadas para disciplinar o trânsito e prevenir acidentes com a instalação de semáforos, muros e grades no intuito de conferir maior segurança aos pedestres.

Detran/DF
A faixa de pedestre estilo zebra surge em Londres, no final da década de 1940, e depois espalha-se pelo mundo. Os Beatles protagonizaram um registro fotográfico mundialmente conhecido, atravessando uma faixa de pedestre em Abbey Road, famosa rua londrina que dá título ao 12º álbum da banda, lançado em 1969.

No Distrito Federal, a faixa de pedestre foi implementada em 1º abril de 1997, data em que também é comemorado o Dia da Faixa pelos brasilienses. Motivo de orgulho, este hábito civilizatório de respeito à faixa de pedestre pelos motoristas e pelos passantes chamou a atenção do órgão de proteção do patrimônio cultural do DF.

O Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural do Distrito Federal (Condepac-DF) declarou o hábito cultural e civilizatório de respeito à faixa de pedestre como patrimônio cultural imaterial do Distrito Federal. Esse reconhecimento, contudo, suscita discussões jurídicas que não diminuem a importância desta prática cultural, mas lança a necessidade de reflexões sobre as mútuas influências da cultura e do direito.

O respeito à faixa de pedestre pela concessão de preferência às pessoas que estão atravessando a via é conduta obrigatória prevista em norma jurídica (Código de Trânsito Brasileiro — CTB, artigo 70), sendo inclusive infração gravíssima deixar de dar preferência de passagem ao pedestre que se encontre na faixa a ele destinada (artigo 214, CTB).

Desta feita, o Condepac-DF está reconhecendo como patrimônio cultural imaterial (PCI) uma conduta positivada pela norma jurídica que enuncia um dever a ser seguido de maneira objetiva e obrigatória, sob pena de sanção, isto é, de punição pelo descumprimento da norma.

Spacca

Dúvida para integrar patrimônio cultural

É justamente por ser um hábito cultural consubstanciado numa norma preceptiva (que obriga/impõe uma conduta) que surge a dúvida sobre a sua adequação jurídica para integrar o patrimônio cultural imaterial (PCI), pois dentre outros requisitos, é preciso assegurar aos detentores de uma prática cultural a liberdade de modificá-la, ou mesmo de não mais praticá-la, o que no caso do respeito à faixa de pedestre não é possível por ser imposta por uma norma coercitiva.

Desta feita, a definição conferida ao PCI pela Unesco em sua convenção, a qual o Brasil é signatário, apresenta como elementos definidores:

a) ser uma prática social que esteja em sintonia com os direitos humanos, promovendo a diversidade e o respeito mútuo;

b) apresente continuidade histórica, sendo transmissível para as gerações futuras. Neste ponto, é necessário que haja a possibilidade de ser recriada em função do ambiente, da interação com a natureza e de sua história.

A possibilidade de recriação desta prática cultural e civilizatória de respeito à faixa de pedestre precisa estar presente no bem cultural para o seu reconhecimento como PCI. No entanto, o direito mitiga esta possibilidade quando impõe referida conduta em norma impositiva. Contudo, seria a positivação desta conduta (respeito à faixa de pedestre) um empecilho para o referido reconhecimento como PCI?

A resposta a esta indagação precisa de uma outra indagação, qual seja: saber se é possível outra prática cultural que não a de respeitar a faixa de pedestre pela concessão de preferência às pessoas que estão atravessando a via. No caso, a conduta que a norma jurídica de trânsito impõe não pode ser realizada de outra forma, e nem deixar de ser realizada, pois o desrespeito ou abandono desta prática cultural é incompatível com os direitos humanos, pois colocará em risco a vida das pessoas que transitam nas vias públicas.

Neste sentido, a viabilidade de registro da prática cultural de respeito à faixa de pedestre não encontra obstáculo insuperável na ordem jurídica positivada. E mais, caberá às gerações futuras manter o seu reconhecimento e a sua continuidade histórica. Já no campo da política cultural é preciso realizá-la com seriedade, pois se este ato de reconhecimento permanecer unicamente na esfera formal, da mera concessão do título de patrimônio cultural imaterial do DF, é provável que pouca coisa mude em sua disseminação, que já não seja assegurada pela aplicação das multas de trânsito.

A expectativa é que o Condepac-DF construa um plano de salvaguarda dessa prática cultural e civilizatória com ações e esforços para ampliá-la no seio social, envolvendo a comunidade na sua construção e disseminação. Caso contrário, vamos presenciar apenas mais uma medida de banalização do patrimônio cultural que se preocupa mais em declarar do que em agir.

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Allan Carlos Moreira Magalhães é doutor e pós-doutor em Direito, professor da Universidade do Estado do Amazonas, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), autor do livro Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo e coautor de É Disso que o Povo Gosta: o Patrimônio Cultural no Cotidiano da Comunidade.

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