2 de agosto de 2024, 21h18
A faixa de pedestre surge com a necessidade de prevenir acidentes, pois a vida cotidiana nas cidades estava em plena aceleração nos idos dos anos 1940 com a disseminação dos carros movidos a combustão. Muitas foram as estratégias adotadas para disciplinar o trânsito e prevenir acidentes com a instalação de semáforos, muros e grades no intuito de conferir maior segurança aos pedestres.
Detran/DF |
No Distrito Federal, a faixa de pedestre foi implementada em 1º abril de 1997, data em que também é comemorado o Dia da Faixa pelos brasilienses. Motivo de orgulho, este hábito civilizatório de respeito à faixa de pedestre pelos motoristas e pelos passantes chamou a atenção do órgão de proteção do patrimônio cultural do DF.
O Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural do Distrito Federal (Condepac-DF) declarou o hábito cultural e civilizatório de respeito à faixa de pedestre como patrimônio cultural imaterial do Distrito Federal. Esse reconhecimento, contudo, suscita discussões jurídicas que não diminuem a importância desta prática cultural, mas lança a necessidade de reflexões sobre as mútuas influências da cultura e do direito.
O respeito à faixa de pedestre pela concessão de preferência às pessoas que estão atravessando a via é conduta obrigatória prevista em norma jurídica (Código de Trânsito Brasileiro — CTB, artigo 70), sendo inclusive infração gravíssima deixar de dar preferência de passagem ao pedestre que se encontre na faixa a ele destinada (artigo 214, CTB).
Desta feita, o Condepac-DF está reconhecendo como patrimônio cultural imaterial (PCI) uma conduta positivada pela norma jurídica que enuncia um dever a ser seguido de maneira objetiva e obrigatória, sob pena de sanção, isto é, de punição pelo descumprimento da norma.
Spacca |
Dúvida para integrar patrimônio cultural
É justamente por ser um hábito cultural consubstanciado numa norma preceptiva (que obriga/impõe uma conduta) que surge a dúvida sobre a sua adequação jurídica para integrar o patrimônio cultural imaterial (PCI), pois dentre outros requisitos, é preciso assegurar aos detentores de uma prática cultural a liberdade de modificá-la, ou mesmo de não mais praticá-la, o que no caso do respeito à faixa de pedestre não é possível por ser imposta por uma norma coercitiva.
Desta feita, a definição conferida ao PCI pela Unesco em sua convenção, a qual o Brasil é signatário, apresenta como elementos definidores:
a) ser uma prática social que esteja em sintonia com os direitos humanos, promovendo a diversidade e o respeito mútuo;
b) apresente continuidade histórica, sendo transmissível para as gerações futuras. Neste ponto, é necessário que haja a possibilidade de ser recriada em função do ambiente, da interação com a natureza e de sua história.
A possibilidade de recriação desta prática cultural e civilizatória de respeito à faixa de pedestre precisa estar presente no bem cultural para o seu reconhecimento como PCI. No entanto, o direito mitiga esta possibilidade quando impõe referida conduta em norma impositiva. Contudo, seria a positivação desta conduta (respeito à faixa de pedestre) um empecilho para o referido reconhecimento como PCI?
A resposta a esta indagação precisa de uma outra indagação, qual seja: saber se é possível outra prática cultural que não a de respeitar a faixa de pedestre pela concessão de preferência às pessoas que estão atravessando a via. No caso, a conduta que a norma jurídica de trânsito impõe não pode ser realizada de outra forma, e nem deixar de ser realizada, pois o desrespeito ou abandono desta prática cultural é incompatível com os direitos humanos, pois colocará em risco a vida das pessoas que transitam nas vias públicas.
Neste sentido, a viabilidade de registro da prática cultural de respeito à faixa de pedestre não encontra obstáculo insuperável na ordem jurídica positivada. E mais, caberá às gerações futuras manter o seu reconhecimento e a sua continuidade histórica. Já no campo da política cultural é preciso realizá-la com seriedade, pois se este ato de reconhecimento permanecer unicamente na esfera formal, da mera concessão do título de patrimônio cultural imaterial do DF, é provável que pouca coisa mude em sua disseminação, que já não seja assegurada pela aplicação das multas de trânsito.
A expectativa é que o Condepac-DF construa um plano de salvaguarda dessa prática cultural e civilizatória com ações e esforços para ampliá-la no seio social, envolvendo a comunidade na sua construção e disseminação. Caso contrário, vamos presenciar apenas mais uma medida de banalização do patrimônio cultural que se preocupa mais em declarar do que em agir.
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Allan Carlos Moreira Magalhães é doutor e pós-doutor em Direito, professor da Universidade do Estado do Amazonas, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), autor do livro Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo e coautor de É Disso que o Povo Gosta: o Patrimônio Cultural no Cotidiano da Comunidade.
Allan Carlos Moreira Magalhães é doutor e pós-doutor em Direito, professor da Universidade do Estado do Amazonas, articulista do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), autor do livro Patrimônio Cultural, Democracia e Federalismo e coautor de É Disso que o Povo Gosta: o Patrimônio Cultural no Cotidiano da Comunidade.
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