Por Gabriela Almeida, Marcel Scinocca, Matheus Arruda, g1 Sorocaba e Jundiaí
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Imagem antiga mostra placa indicando local de estocagem de lixo atômico em Itu (SP) — Foto: Acervo Família Piunti |
29/07/2024 | A antiga fotografia de uma placa com a inscrição "Estrada de Botuxim - Caminho de Hiroshima", em alusão à cidade japonesa bombardeada em 1945, representa, de forma literal, o temor da população que vive próximo ao "lixo atômico" de Itu (SP) Mas será que existe razão para tanto medo assim?
Construído de forma clandestina na década de 1970, o depósito do Torta II fica localizado a menos de 30 quilômetros do Centro de Itu. Hoje, o local, que está em processo de regularização, armazena 3,5 mil toneladas de um resíduo radioativo proveniente do tratamento químico da monazita.
Recentemente, moradores comentaram sobre o receio do material contaminar o solo, o lençol freático e, consequentemente, ir parar nas torneiras da população. "Perto do 'lixo' tem córrego, rios, represa, mas é ruim por causa da água, contaminação e pelos animais", relatou o morador Francisco José da Silva.
De fato, existe radioatividade na água que consumimos, assim como outras substâncias. E isto é completamente normal e seguro, desde que esteja dentro do Valor Máximo Permitido (VMP), estabelecido pelo Ministério da Saúde (MS).
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Material radioativa está estocado em Itu (SP) desde a década de 1970 — Foto: Reprodução/ TV TEM |
Para saber se a água de Itu está, de certa forma, "alterada", o g1 analisou dados divulgados pelo Sistema de Informação da Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), instrumento do MS que avalia compostos e condição da água em todo o país.
Na base de dados, foram encontradas 296 análises de radioatividade realizadas em diferentes locais de Itu, que incluem ponto de consumo, captação, sistema de distribuição e saída de tratamento. No entanto, os resultados são referentes apenas ao ano de 2022 e não constam informações dos anos seguintes.
- Das 296 análises, 34 apresentaram atividade radioativa;
- Duas delas estavam no limite da concentração máxima considerada segura no Brasil
- Essas amostras que atingiram o limite considerado seguro foram coletadas no ponto de consumo de uma indústria metalúrgica da cidade.
Conforme o levantamento, a radiação aferida no município está acima da média do estado de São Paulo.
Em Itu, a média da atividade alfa total detectada foi de 0,29 Bq/L (número de desintegrações radioativas por segundo) e média de 0,47 Bq/L de atividade beta.
Em todo o estado de SP, ainda em 2022, a média das análises é de 0,21 Bq/L e 0,31 Bq/L para atividades alfa e beta, respectivamente.
Conforme um relatório publicado pela INB, as análises realizadas nas águas superficiais da região e da represa, que abastece a Estação de Tratamento de Água Rancho Grande (Águas de Itu), mostram que a concentração de urânio está dentro do limite estipulado por órgãos federais para consumo humano. Os resultados, segundo a INB, demonstram que o depósito não altera os níveis de urânio nos mananciais.
Para o professor da Universidade de Sorocaba (Uniso) José Martins de Oliveira Junior, pós-doutorado em física nuclear, dificilmente a água do local está contaminada.
A INB afirma que os níveis de urânio ao longo do percurso são naturais - muito abaixo do limite do Ministério da Saúde (0,03 mg/L) para água de consumo e do limite do Conselho Nacional de Meio Ambiente - Conama (0,02 mg/L) para águas doces.
"O depósito que está ali onde o material está armazenado é seguro, provavelmente não tem vazamento de material, porque essa radiação beta ou alfa só iria aparecer se tivesse vazando o material: a areia monazítica que está armazenada, porque a radiação alfa e beta vem do decaimento do urânio e do tório, então precisaria estar material escapando para que essa radiação fosse detectada", tranquiliza.
De acordo com a Prefeitura de Itu, não há indicativos de contaminação de áreas nos arredores do depósito, conforme relatórios oferecidos pelas Indústrias Nucleares do Brasil (INB) até julho deste ano.
Além disso, a Companhia Ituana de Saneamento também faz duas análises por ano em todos os mananciais, inclusive onde fica o depósito do Botuxim, e garantiu que ele não demonstra alterações ou irregularidades.
Ausência de dados
O Ministério da Saúde informou ao g1 que a ausência dos dados de Itu é de competência do próprio município.
Questionada, a CSI negou que não tenha enviado dados para alimentar o sistema Siságua. “Mensalmente, os dados sobre a qualidade da água são enviados ao Siságua, e podem ser acessados no site do Siságua por meio de cadastro”, garante.
A autarquia disse ainda que realiza análises de hora em hora nas captações de água bruta e em cerca de 200 pontos de água tratada espalhados pela cidade.
A instituição lembrou ainda que no bairro Botuxim não há coletas, já que não atua na região e não é responsável pelo abastecimento de água no local.
A monazita é segura?
De acordo com Oliveira Junior, doutor em física nuclear, a monazita possui elementos pesados como urânio e tório "que se desintegram e vão gerando outros materiais ao longo do caminho até, depois de muitos milhões de anos, se tornar um material estável que seria o chumbo."
O material, segundo as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), é considerado de baixa radioatividade e precisa ser estocado seguindo normas de segurança.
Armazenado no Sítio São Bento, entre 1975 e 1981, o material fica dentro de sete silos, que são grandes depósitos em forma de piscinas retangulares, construídas em concreto, com paredes de 20 centímetros de espessura e superfícies internas impermeabilizadas.
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Material conhecido como 'lixo atômico' está estocado em três locais, sendo dois em São Paulo e um em Minais Gerais — Foto: Paulo Gaspar |
Desta forma, segundo o especialista, é praticamente impossível que a monazita tenha, em algum momento, "vazado" e contaminado o solo.
"Elas emitem radiação, um pouco de radiação gama, a radiação principal emitida pelo urânio e tório, que está presente também na areia monazítica, são partículas mais pesadas, então elas penetram muito pouco, a distância percorrida por elas é pequena, são pequenas, basta uma coluna de ar que é suficiente para barrá-las", explica.
Praia radioativa?
Você sabia que existe no Brasil uma praia "radioativa"? Fica em Guarapari, no Espírito Santo. A areia de lá é escura, quase preta. Isto, porque trata-se de areia monazítica, o mesmo minério armazenado em Botuxim, Itu.
Ainda conforme o físico José Oliveira Junior, a radiação presente na praia de Guarapari é, pelo menos, 10 vezes maior do que a atividade radioativa encontrada em outros lugares. "Isso, segundo muitos estudos que existem de Guarapari, não tem trazido resultados [maléficos], como aumento do número de casos de câncer por causa da presença da areia monazítica.
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Praia da Areia Preta, em Guarapari — Foto: Reprodução/Redes sociais |
'Lixo atômico' em Itu
O g1 foi até Botuxim, bairro que fica a cerca de 30 quilômetros do Centro de Itu, para verificar a atual situação do "lixo" e como os moradores do bairro se sentem com a presença do material, que também está depositado em outras duas unidades da empresa, na capital paulista e em Caldas (MG).
Conforme a INB, o material foi depositado a granel, sem o uso de galões, como é feito com o material estocado em Minas Gerais.
Estes silos, em Itu, ocupam aproximadamente 800 m² e uma área isolada de 20 mil m², que fica dentro de um sítio que tem área total de aproximadamente 300 mil m².
Em 2021, houve movimentações do município para impedir que o material depositado no bairro Interlagos, na capital, fosse transferido para Itu.
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Conforme a INB, material está estocado a granel em sítio de Itu (SP) — Foto: Reprodução/TV TEM |
De acordo com a Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), hoje o local passa por um processo de regularização.
"A Cnen, na forma da lei, exerce o controle regulatório sobre a Unidade de Estocagem de Botuxim, para garantir a segurança nuclear e proteção radiológica dos trabalhadores, do público e do meio ambiente. Importante salientar que, embora seja uma instalação fiscalizada pela Cnen, a unidade foi construída em época anterior às etapas de licenciamento atualmente existentes, portanto, um licenciamento corretivo vem sendo implementado ao longo dos anos."
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Muro protege material radiativo estocado em sítio de Itu (SP) — Foto: Marcel Scinocca/g1 |
Quem monitora o material?
O monitoramento do material é de responsabilidade da INB, pelo Programa de Monitoração Radiológica Ambiental, que "prevê a monitoração de exposição à radiação ionizante, coleta de água de chuva, coleta de água de superfície, água subterrânea, água potável e sedimento".
Conforme a INB, as medições da radiação ionizante são feitas com um instrumento chamado dosímetro. Esses equipamentos estão instalados em 15 pontos distribuídos pela área.
Além disso, a INB informou que também realiza o controle pluviométrico para monitorar o volume de chuva sobre a unidade e, com base nesse dado, faz uma avaliação para saber se alguma medida preventiva será necessária.
Os dados são compilados em um relatório anual, que também contempla a série histórica de resultados dos mesmos parâmetros para permitir a avaliação de tendência, que são enviados para cinco órgãos fiscalizadores. São eles:
- Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen);
- Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama);
- Secretaria de Meio Ambiente do Município de Itu (SMA-Itu);
- Defesa Civil do Município de Itu;
- Companhia Ituana de Saneamento (CIS).
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Imagem atual do local onde material conhecido como 'lixo atômico' está estocado em Itu (SP) — Foto: Marcel Scinocca/g1 |
Contudo, o físico com pós-doutorado em energia nuclear no ambiente Paulo Massoni, do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), adverte: "Se algum dos compartimentos estiver danificado, pode, sim, 'vazar' radiação".
"O urânio tem uma meia vida tão longa que, se fossem 100 anos de depósito dessas amostras, a atividade praticamente não mudaria. Mas depende do isótopo do urânio", explica.
Ainda conforme ele, o ponto de maior atenção, a partir de agora, está no transporte do material, em eventual venda. "Existe uma distância segura. Mas seria bom tomar cuidado com as colocações, já que irá a público", diz.
Em caso de explosão ou vazamento no local, Massoni diz que "danificaria a contenção de radiação e isso iria para o ambiente. Mas explosão seria por algo externo, não devido ao material radioativo."
Em caso de vazamento, numa eventual ruptura dos "containers", por exemplo, o problema seria maior.
"Se vazar, poderá contaminar solo, plantas e atmosfera. A blindagem é antiga e eu não sei o estado delas. Se for somente concreto, dentro de todos esses anos, qual a qualidade do concreto para contenção etc. Tem que saber de todos os detalhes. O ideal seria se, além do concreto, tivesse chumbo na blindagem."
O especialista também explica o que pode ocorrer na eventualidade dessas duas situações se concretizassem. "Com relação à radiação, existe uma grandeza física chamada atividade... Se essa atividade for elevada, o tempo exposto a ela poderá causar quebra da molécula de DNA humana, ou mutação, levando a vários tipos de câncer, leucemia principalmente".
O g1 questionou se o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que responde pelo licenciamento ambiental, já realizou alguma fiscalização no terreno e se acompanha a situação. O instituto afirmou monitorar os cenários de risco previstos para os impactos ambientais associados à comercialização da Torta 2.
Conforme o órgão, esses impactos são mais evidentes nas seguintes áreas:
- Meio físico: incluem as vias de acesso aos depósitos, o canteiro de obras necessário para a mobilização de maquinário e a produção de resíduos e rejeitos convencionais;
- Meio biológico: abrangem a perturbação da fauna, supressão vegetal, compactação e processos erosivos do solo, além da qualidade da água da malha hidrográfica devido ao eventual aporte de material particulado e assoreamento;
- Aspectos socioeconômicos: referem-se à percepção de risco associado ao empreendimento nuclear pela população local.
O Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), que, nos anos de 1990, abriu um inquérito para investigar a situação, tendo arquivado posteriormente o procedimento, foi questionado sobre como acompanha a situação de Itu, mas também não se manifestou.
Por que o material ainda está lá?
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Unidade da INB, em São Paulo, onde parte da Torta II está estocada — Foto: Reprodução/Google Street View |
A INB afirma que não realiza mais o processamento de monazita e que o material não tem mais utilidade para eles, mas que é um insumo estratégico para outros segmentos.
A monazita, segundo a INB, é um mineral natural encontrado ao longo da costa brasileira, principalmente entre a região norte do estado do RJ e o sul da Bahia. Os produtos desse mineral eram utilizados para produzir catalisadores, vidros especiais e ligas metálicas especiais, como, por exemplo, o cristal de neodímio, que gera o laser utilizado em cirurgias oftálmicas.
Leilões milionários
Em 2013, a INB tentou vender o material e fez um contrato com uma empresa chinesa. Uma audiência pública realizada em Itu debateu sobre a segurança do material no local e também sobre a transferência dos resíduos para a China, que teria comprado todo o material (das três unidades) por R$ 65 milhões, mas isso nunca aconteceu, pois a empresa não obteve as licenças ambientais para receber esse material na China.
Em junho deste ano, no entanto, a INB publicou um novo edital de oferta pública para vender todo o material armazenado em Itu, São Paulo e Caldas (MG).
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INB coloca à venda mais de 15 mil toneladas de 'Torta 2' armazenadas em unidade desativada em MG — Foto: Reprodução EPTV |
O material que está em Itu foi avaliado em R$ 14,3 milhões, em 2013. A INB afirma que, atualmente, não há uma estimativa para o valor dele e que, agora, a empresa aguarda a apresentação de propostas de eventuais interessados na compra que "irão refletir a avaliação do mercado atual".
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Unidade da INB, em Caldas (MG), onde a maior parte da Torta II está estocada — Foto: Reprodução/Google Street View |
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