sábado, 12 de agosto de 2023

artigo | Documentário e fabulação se misturam em filme sobre Vera Holtz e suas irmãs

EU ACORDO E NÃO ME LEMBRO

Eduardo Escorel, na revista Piauí | 09 ago 2023_08h01

O título desta coluna deveria estar entre aspas – a frase é um fragmento do texto dito em off no início de As Quatro Irmãs, de Evaldo Mocarzel. A primeira imagem da abertura é de Vera Lúcia (Vera Holtz), em close, de perfil. Ela vira a cabeça, encara a lente da câmera e uma súplica começa em off: “Papai, papai, paiêee!…” Após fade out, o apelo sonoro prossegue na tela preta e nos planos seguintes: “Mãe, mamãe, mamãe!…”

Algumas dessas imagens têm duração de frações de segundo. Mostram ambientes e detalhes do casarão da família Holtz, em Tatuí, no interior de São Paulo – em uma, Vera está de costas, no canto da sala, como se estivesse de castigo; outras, mais longas, apresentam a paisagem rural, a grade no topo do portão na qual as iniciais PH e o número 1916 são formados com metal retorcido, o relógio de pêndulo na parede, a luz do sol refletida na marola, pés vistos de cima caminhando na água à beira-mar etc.

Em um sussurro, a voz chama por “Teresa” e continua na primeira pessoa:

“Eu acordo e não me lembro… Teresa!… Teresa!… Vera!… Às vezes eu nem sei onde eu estou… Vera!… Vera!…” As vozes se superpõem na continuação: “O passado… Regina!… o passado me parece uma noite distante… Regina!… Regina!… Uma noite distante e fria do esquecimento… Pai!… Como é que eu posso esquecer tudo aquilo que eu amei?… Eu sinto um esvaziamento do passado depois de tantas personagens… E é difícil, né? Difícil para uma atriz acordar às vezes sem memória… justamente a memória. Meu instrumento de trabalho” – texto repetido, como um refrão, poucos minutos depois.

Essa tentativa de descrever, de modo resumido, os dois minutos e meio iniciais de As Quatro Irmãs resulta precária, muito aquém do impacto da abertura do filme. Serve, porém, para indicar que a memória ou a perda da memória, instrumento de trabalho de Vera, é o motivo que leva a atriz a se reunir com suas irmãs Teresa, Rosa e Regina, a fim de evocarem o pai, a mãe e a vida passada em comum. As imagens do rosto das quatro são fundidas em uma só, sem que no relato cada uma perca sua individualidade. Vera diz que “ama e respeita as irmãs como partes inseparáveis de seu próprio ser”.

Mocarzel recorre com destreza a uma linguagem visual e sonora elaborada, na tentativa de recuperar tanto através dos testemunhos quanto por meio de encenações e da montagem, a experiência de vida e os traumas sofridos na formação de cada uma das quatro irmãs.

Passados os primeiros 10min45seg de As Quatro Irmãs, creio que a declaração de intenções feita por Vera em voz off pode ser atribuída também a Mocarzel, ao menos em parte: “Esse documentário é isso. É uma tentativa de resgate. Resgate de toda essa memória que sempre alimentou a minha criação. Não há memória sem imaginação. Esse filme é uma espécie de fabulação de tudo aquilo que mais amo. Meu bem mais precioso. A minha verdadeira essência – minha família. E, é claro, minhas irmãs Teresa, Rosa e Regina.”

A declaração confirma que As Quatro Irmãs se situa em uma área comum na qual documentário e fabulação, imaginário e realidade convivem e se superpõem. Inquieto, Mocarzel transita com liberdade entre diferentes gêneros de registro e assegura merecido lugar de destaque ao seu filme no panorama atual do cinema brasileiro.

Ao se aproximar o final dos 76 minutos de As Quatro Irmãs, Vera declara sua idade e diz: “eu espero viver muito, como meus tios viveram, meus pais, mas acho que o ciclo de partida e mais partidas se encerrou dentro de mim. Eu já não quero mais partir, não me importa aonde. Hoje, eu quero estar presente em algum lugar…”

Após ser exibido, em 2018, na 42ª Mostra Internacional de Cinema, em São Paulo, As Quatro Irmãs enfrentou as vicissitudes da pandemia e só agora, passados cinco anos, teve lançamento dia 7, na Claro TV+ e no Vivo Play, estando previsto ficar disponível breve também na Apple TV e no Google TV.

A exibição em salas de cinema está limitada a sessões especiais. Uma ocorreu segunda-feira (7/8), em Tatuí, terra natal de Vera Holtz; outra ontem (8/8) no CineSesc, em São Paulo; a terceira terá lugar em 30 de agosto, no Cine Arte UFF, em Niterói, e a quarta, também no final de agosto, será no Estação Gávea, no Rio de Janeiro. A exibição comercial no circuito de salas vai se tornando cada vez mais restrita para filmes brasileiros, sintoma preocupante do nosso tempo.




Eduardo Escorel
Eduardo Escorel, cineasta, diretor de Imagens do Estado Novo 1937-45

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