Fonte imagem: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Li%C3%A7%C3%A3o_de_Anatomia_do_Dr._Tulp#/media/Ficheiro:The_Anatomy_Lesson.jpg
Necropsia de um coração feliz
A obra “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp” do pintor e gravador holandês Rembrandt nos deixa transparecer o fascínio daqueles pupilos diante da dissecção da mão esquerda de um marginal condenado à morte por assaltar a mão armada, Ariskindt, pelo Doutor Nicolaes Tulp. Essa pintura nos remete a igualdade intrínseca que todos temos antes de termos a própria vida: a própria morte.
* * *
O corpo estava deitado sobre a grande e gélida pedra daquela fria sala, repousando com os olhos fechados para sempre, sem nem mesmo dar indícios de morte. Mais uma vez o médico legista iria lidar com a substância de seu trabalho: a morte. Chegou. Defrontou-se com um corpo nu de uma idosa e, aparamentado, iniciou os devidos procedimentos.
Após avaliar, minuciosamente, a parte externa do corpo, partiu para um incisão para avaliar o tórax e o abdômen. Pensou em que letra cortaria o corpo, se em “I”, “T” ou “Y”. Decidiu cortar em “I”. Fez o corte, aprofundando o bisturi sobre as camadas epidérmicas, fazendo um corte longitudinal indo do pescoço ao púbis. Abriu o corpo até então incólume.
Primeiro, foi ao coração e viu algo que nunca antes vira em sua carreira, a seguinte mensagem gravada no órgão cardíaco: “Este compartimento não deve ser aberto.” Em sua mente veio o mistério e a curiosidade de violar aquele aviso. Mas decidiu deixar o coração por último e o deixou fora do corpo até terminar o restante do trabalho. Ansiosamente, continuou explorando suas vísceras e entranhas, analisando órgão à órgão, sem nenhum acanhamento em violar a intimidade daquela (ex-)mulher. Posteriormente foi a cabeça e examinou-a detalhadamente, não encontrando nenhum pensamento vivo que pudesse aproveitar. Reavaliou o corpo e nada. Retornou ao coração e apenas ele não tinha sido aberto.
Deveria dar um causa da morte aquela senhora. Deveria encontrar pelo menos uma justificativa para aquela morte. Empunhou o coração e o encarou, com o braço estendido, como se intuitivamente, parafraseando a passagem da obra de Hamlet encarando o crânio, metáfora da morte. Na sua consciência, enquanto analisava aquele órgão incólume sob a alva luz da sala, ressoou na sua mente: “Saber ou não saber, eis a questão?”. A sua dúvida, agora, não era mais profissional, mas filosófica.
De repente, alguém adentrou a sala e lhe lembrou que a família esperava o corpo, sendo retirado das profundezas de sua reflexão, como que recuperado de seu afogamento intelectual. Decidiu guardar o coração incólume na caixa torácica. Costurou os cortes feitos no corpo. Então olhou o rosto da senhora onde transparecia uma leve expressão de felicidade denotada pelas sutis contrações faciais como a Mona Lisa de da Vinci. Pensou consigo próprio que naquele coração repousavam, sem dúvida, as maiores felicidades daquela senhora e, agora, julgava-se feliz por ter preservado aquele tesouro. Pelo menos isso, ela levaria consigo em seu sonho eterno.
O médico entregou o corpo e então na hora de decidir a causa da morte, pensou em colocar “por felicidade”, mas teve de se ater a seu profissionalismo e escrever “por causas naturais”.
Depois desse dia, o médico mudou a sua sensibilidade. Percebeu que, ao contrário de muitos, existem aqueles que morrem de felicidade e seria um crime violar a sua caixa de emoções bem guardada em seu peito. Realmente, os pupilos do Dr. Tulp tinham razão em se fascinarem com a exploração da morte. Pois por mais que pareça ser misteriosa e lúgubre, pode sempre trazer mudanças e novidades, dando sentido a própria existência.
A.M.O.R.
(Ana Moraes de Oliveira Rosa)
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