Obra traz revelações sobre uma modalidade pouco explorada pela historiografia brasileira: os homens que pertenciam ao Estado
Felipe Shikama, no Cruzeiro do Sul, com edição do DT
Fábrica de Ferro São João de Ipanema (1820), pintura de Jean-Baptiste Debret. Foto: Reprodução / J. F. de Almeida Prado (1973) |
23/06/2019 | A força de trabalho escravo usada na construção e no funcionamento da Fábrica de Ferro São João de Ipanema, em Iperó, é analisada no livro “Escravos da nação – o público e o privado na escravidão brasileira, 1760-1876” da pesquisadora Ilana Peliciari Rocha, que acaba de ser lançado pela Editora da USP (Edusp).
Com 344 páginas, a obra traz revelações sobre uma modalidade de escravidão pouco explorada pela historiografia brasileira: os escravos que pertenciam ao Estado, que se distinguem como escravos públicos e que durante o Brasil colonial eram chamados de “escravos do Real Fisco” ou “escravos do Fisco” e no Império ficaram conhecidos como “escravos nacionais” ou “escravos da nação”.
O livro é fruto da tese de doutorado em História Econômica, pela USP, defendida pela autora em 2012. A escravidão, aliás, já havia sido objeto de estudos de Ilana na graduação em História, pela Unesp, e no programa de mestrado em História Econômica, também pela USP. “A ideia de trabalhar os ‘escravos da nação’ surgiu, inicialmente, de um bate-papo com meu orientador [professor Dario Horacio Gutierrez Gallardo] e materializou-se com o contato com documentos no Arquivo do Estado de São Paulo”, detalha. A autora examinou fontes oficiais, como os relatórios governamentais dos ministérios, documentos manuscritos como cartas oficiais e requerimentos, legislação, recortes de jornais e outras publicações da época.
Vista da Fazenda de Santa Cruz, propriedade agrícola de usufruto da Coroa. A pintura é do artista Jean-Baptiste Debret. Foto: Voyage Pittoresque et Historique au Brésil (1839)
|
Conforme ela, esse contingente de escravos públicos foi incorporado ao patrimônio imperial depois do confisco dos bens dos jesuítas pela Coroa portuguesa, em 1760, e continuaram presentes por mais de um século, até a implantação gradual da Lei do Ventre Livre, de 1871.
Além da Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, uma propriedade agrícola de usufruto da Coroa como local de passeio, o livro analisa a Fábrica de Ferro São João de Ipanema, em Iperó, na Região Metropolitana de Sorocaba (RMS), ambos redutos de escravaria pública que, segundo a pesquisadora, permitem uma visão panorâmica das transformações ocorridas no âmbito do escravismo brasileiro.
Tratamento diferenciado
Quando se fala em escravidão do Brasil, é senso comum associar os escravizados à ideia de propriedade privada, mas pouco ou quase nada é dito sobre a condição de escravos públicos ou estatais, que é o diferencial do livro da pesquisadora de Franca, que atualmente leciona na Universidade Federal do Triângulo Mineiro, (UFTM). “Uma dificuldade é a dispersão da documentação, pois esses escravizados estavam distribuídos em todo o território do Brasil Colonial e Imperial”, afirma.
Obra é fruto de tese de doutorado. Crédito da foto: Reprodução |
E quais as diferenças fundamentais entre os escravos públicos e os escravos privados? Segundo a autora, para pensar nessa caracterização é preciso retornar ao tratamento que os jesuítas deram a esses escravizados. “Esses padres estimularam, por exemplo, que os escravizados formassem famílias”, comenta.
Apesar do tratamento diferenciado, Ilana reitera que a condição escrava era comum a todos os escravizados, ou seja, a condição de coisa e a submissão pela força faziam-se presentes. “As escolas e hospitais estavam presentes nos estabelecimentos e, em alguns momentos, receberam os ‘escravos da nação’. Não podemos dizer que eles recebiam um tratamento melhor, mas diferenciado”, acrescenta.
A pesquisadora detalha que no caso da Fábrica de Ipanema, desde o início do empreendimento foi necessário o trabalho de escravos especializados. “Foram encaminhados cem escravos para trabalharem como serventes da obra, doze escravos pedreiros, dez escravos carpinteiros e seis ferreiros”, afirma.
A fábrica, segundo sua pesquisa, estava dividida em seis classes, sendo que alguns escravizados chegam a aparecer na segunda classe. “Aparentemente, caracterizavam-se por um conhecimento técnico mais apurado, responsáveis por passarem esse conhecimento a outros, os mestres. Assim, estavam inseridos nas diversas atividades da Fábrica de ferro. Em quase todas as etapas de produção estavam presentes, exceto nas funções de controle central (primeira classe)”.
O número de escravizados oscilou de 100 a 167 para o período de 1837 a 1862. Posteriormente, ocorreu a redução, gradativamente, para 52 escravizados em 1870.
Essa redução, revela Ilana, ocorreu em função de mortes e transferências de escravos para outros estabelecimentos. “Além disso, as alforrias estavam presentes, principalmente as dos homens, possivelmente aqueles especializados que ganhavam uma remuneração”. (Felipe Shikama)
Serviço
“Escravos da nação – 0 público e o privado na escravidão brasileira, 1760-1876” custa R$ 52 e pode ser adquirido pelo site edusp.com.br.
Nenhum comentário:
Postar um comentário