Por Maurício Cardoso
O ministro Celso de Mello completa hoje 23 anos de magistratura no Supremo Tribunal Federal. A data merece tanto mais comemoração quando se sabe que não haverá outra a celebrar. O ministro já confirmou que deve deixar a suprema corte antes de se esgotar seu mandato. Aos 66 anos, o ministro tem idade para permanecer em atividade até novembro de 2015.
O julgamento da AP 470, talvez a última grande intervenção do ministro, tem sido uma oportunidade para se medir o impacto de sua presença na bancada de julgadores da mais alta corte de Justiça do país. Neste momento de máxima exposição dos ministros, em que cada um se revela por inteiro em suas virtudes e defeitos, o decano tem se destacado não só por seu notório saber jurídico e sua experiência, mas principalmente pelo seu comportamento sóbrio e seguro. Cada vez que a temperatura sobe e os ânimos ameaçam explodir, é a serenidade do decano que devolve o debate à sua normalidade.
Foi ele, por exemplo, juntamente com o ministro Marco Aurélio, que atuou para convencer o ministro Ricardo Lewandowski, revisor na AP 470, a ceder de sua posição de julgar o processo em bloco e acatar a posição intransigente do relator, ministro Joaquim Barbosa, de julgar por partes. Como já antecipara Marco Aurélio, sem uma concordância de todos para adotar uma metodologia única, o julgamento se transformaria no caos.
Se dependesse de suas preferências, no entanto, um caso como o do mensalão, jamais seria julgado originalmente pelo Supremo, já que é contrário à prerrogativa de foro por função. Para Celso de Mello, a Constituição republicana de 1988 mostrou-se estranhamente aristocrática ao ampliar o rol de autoridades com direito a ser processadas no Supremo. “A vocação do STF não é de atuar como tribunal ordinário em matéria criminal”, disse em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2012. “Quem tem medo dos membros do Ministério Público de primeiro grau e dos magistrados de primeira instância? Eu atuei como membro do Ministério Público, geralmente em primeiro grau e na área penal. Os membros do MP são profissionais qualificados e capazes de agir com isenção e independência”.
E foi justamente nos primeiros dias do julgamento da AP 470 que o ministro acabou recebendo uma sentida homenagem dos advogados de defesa dos réus. Coube a José Luís de Oliveira Lima, o advogado de José Dirceu, citar artigo do colega Arnaldo Malheiros Filho, advogado de Delúbio Soares, para ressaltar as qualidades do decano: “Sua atuação foi relevantíssima no processo penal. Ex-promotor, impôs a seus antigos colegas a observância — que nunca deveria ter sido abandonada — do dever de acusar fundamentadamente, com respeito aos direitos individuais. Quando começou a vicejar certa jurisprudência que falava em “abrandamento dos rigores” de dispositivos legais que corporificavam garantias constitucionais, os votos de Celso viravam o norte para a direção oposta, mostrando que o que se pode abrandar são restrições à defesa, mas que as garantias desta têm que ser rigorosamente observadas”, diz Malheiros no artigo, que merece leitura integral.
Durante 19 anos de serviços prestados ao Ministério Público de São Paulo e ao longo de 23 anos no Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello construiu o poder de votos e decisões e a imagem de intransigente defensor dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Para ele, não se transige com os princípios fundamentais como a liberdade de expressão, a presunção de inocência e a garantia das minorias que exercerem seus direitos, mesmo contra a posição majoritária da sociedade.
Jurisprudência
Os votos que redigiu com esmero técnico e profundidade jurídica são os melhores testemunhos da obra e do pensamento de Celso de Mello no Supremo. E são em pequenas causas que se pode perceber o jeito de ser do juiz Celso de Mello.
Em 2007, por exemplo, ele negou pedido de Habeas Corpus de um preso que pedia para ser transferido para tratar de sua saúde. Ele tinha câncer, era portador do vírus HIV, e, literalmente, apodrecia jogado num canto da prisão no interior de São Paulo. Diante do mau cheiro de suas feridas, ninguém queria ficar na mesma cela que ele. E a transferência não saía, por falta de escolta policial. Agindo em causa própria, o preso pediu Habeas Corpus. Por questões formais, o ministro negou o pedido, mas não encerrou o caso aí.
No mesmo despacho que negou o HC, deu ordens ao Ministério Público, à Defensoria Pública, e às secretarias estaduais de Administração Penitenciária e da Justiça para que viabilizassem os meios de atenuar o sofrimento do preso e criticou a inépcia administrativa. “Em virtude da extrema gravidade de seu estado de saúde, está sendo submetido a tratamento médico, cuja eficácia, no entanto, parece não se revelar satisfatória, consideradas as razões administrativas (sempre elas!!!) invocadas pelas autoridades penitenciárias, como a (recorrente) falta de escolta policial-militar, resultando na falta de atendimento a que o detento tem direito”, disse ele na ocasião.
Em 2009, não foi diferente ao se deparar com outro caso grave de omissão do poder público. Na ação, o Ministério Público pediu o pagamento de indenização para a mãe de uma criança portadora da Síndrome de West, doença que a deixou ao nascer com paralisia cerebral, cegueira, tetraplegia, epilepsia e malformação encefálica. As anomalias genéticas eram decorrentes de infecção por citomegalovírus, contraído por sua mãe durante o período de gestação, enquanto trabalhava no berçário de hospital público do Distrito Federal.
O ministro chorou ao dar a decisão para que o governo do Distrito Federal indenizasse a criança com uma pensão mensal de dois salários mínimos. “Esse caso mostra que há processos em que o próprio juiz se emociona e se angustia, tal o grave quadro de desamparo social que se abateu sobre um ser humano tão vulnerável, causado pela frieza burocrática do aparelho de Estado e agravado pela insensibilidade governamental. O STF, no entanto, restaurou a ordem jurídica violada e fez prevalecer, em favor de um menor injustamente posto à margem da vida, completamente ultrajado em sua essencial dignidade, as premissas éticas que dão suporte legitimador ao nosso sistema de Direito e aos nosso sentimento de Justiça!”
Primeira instância
Celso de Mello tomou posse como promotor em 3 de novembro de 1970, aprovado em primeiro lugar em um concurso com 1.118 concorrentes. De seus 19 anos no Ministério Público, passou 18 em primeira instância. Em tempos de generais presidente e de plena vigência do AI-5, não era fácil para um defensor dos direitos fundamentais, como ele sempre foi, evoluir na carreira. Antes de chegar ao Supremo, em 17 de agosto de 1989, nomeado pelo presidente da República José Sarney, passou também pela Secretaria de Cultura do estado de São Paulo, pela assessoria Jurídica da Casa Civil da Presidência da República, e pela Consultoria Geral da República.
Ao chegar ao Supremo, a recém-promulgada Constituição de 1988 ainda era interpretada à luz da jurisprudência, baseada nas antigas Cartas, herança da ditadura militar. Coube a Celso de Mello estabelecer marcos importantes para a virada de jurisprudência do tribunal, sobretudo no capítulo de garantias e direitos fundamentais.
A corte, presidida pelo ministro Neri da Silveira, tinha, à época, os ministros Aldir Passarinho, Carlos Madeira, Célio Borja, Francisco Rezek, Moreira Alves, Octávio Gallotti, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence. Nos 20 anos seguintes, Celso de Mello ainda dividiria a banca do STF com Carlos Velloso (substituto de Rezek), Ilmar Galvão (que substituiu Passarinho), Maurício Corrêa (no lugar de Brossard), Nelson Jobim, Ellen Gracie, Carlos Alberto Direito e Eros Grau, além dos dez atuais integrantes da corte.
Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 17 de agosto de 2012
O julgamento da AP 470, talvez a última grande intervenção do ministro, tem sido uma oportunidade para se medir o impacto de sua presença na bancada de julgadores da mais alta corte de Justiça do país. Neste momento de máxima exposição dos ministros, em que cada um se revela por inteiro em suas virtudes e defeitos, o decano tem se destacado não só por seu notório saber jurídico e sua experiência, mas principalmente pelo seu comportamento sóbrio e seguro. Cada vez que a temperatura sobe e os ânimos ameaçam explodir, é a serenidade do decano que devolve o debate à sua normalidade.
Foi ele, por exemplo, juntamente com o ministro Marco Aurélio, que atuou para convencer o ministro Ricardo Lewandowski, revisor na AP 470, a ceder de sua posição de julgar o processo em bloco e acatar a posição intransigente do relator, ministro Joaquim Barbosa, de julgar por partes. Como já antecipara Marco Aurélio, sem uma concordância de todos para adotar uma metodologia única, o julgamento se transformaria no caos.
Se dependesse de suas preferências, no entanto, um caso como o do mensalão, jamais seria julgado originalmente pelo Supremo, já que é contrário à prerrogativa de foro por função. Para Celso de Mello, a Constituição republicana de 1988 mostrou-se estranhamente aristocrática ao ampliar o rol de autoridades com direito a ser processadas no Supremo. “A vocação do STF não é de atuar como tribunal ordinário em matéria criminal”, disse em entrevista ao Anuário da Justiça Brasil 2012. “Quem tem medo dos membros do Ministério Público de primeiro grau e dos magistrados de primeira instância? Eu atuei como membro do Ministério Público, geralmente em primeiro grau e na área penal. Os membros do MP são profissionais qualificados e capazes de agir com isenção e independência”.
E foi justamente nos primeiros dias do julgamento da AP 470 que o ministro acabou recebendo uma sentida homenagem dos advogados de defesa dos réus. Coube a José Luís de Oliveira Lima, o advogado de José Dirceu, citar artigo do colega Arnaldo Malheiros Filho, advogado de Delúbio Soares, para ressaltar as qualidades do decano: “Sua atuação foi relevantíssima no processo penal. Ex-promotor, impôs a seus antigos colegas a observância — que nunca deveria ter sido abandonada — do dever de acusar fundamentadamente, com respeito aos direitos individuais. Quando começou a vicejar certa jurisprudência que falava em “abrandamento dos rigores” de dispositivos legais que corporificavam garantias constitucionais, os votos de Celso viravam o norte para a direção oposta, mostrando que o que se pode abrandar são restrições à defesa, mas que as garantias desta têm que ser rigorosamente observadas”, diz Malheiros no artigo, que merece leitura integral.
Durante 19 anos de serviços prestados ao Ministério Público de São Paulo e ao longo de 23 anos no Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello construiu o poder de votos e decisões e a imagem de intransigente defensor dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Para ele, não se transige com os princípios fundamentais como a liberdade de expressão, a presunção de inocência e a garantia das minorias que exercerem seus direitos, mesmo contra a posição majoritária da sociedade.
Jurisprudência
Os votos que redigiu com esmero técnico e profundidade jurídica são os melhores testemunhos da obra e do pensamento de Celso de Mello no Supremo. E são em pequenas causas que se pode perceber o jeito de ser do juiz Celso de Mello.
Em 2007, por exemplo, ele negou pedido de Habeas Corpus de um preso que pedia para ser transferido para tratar de sua saúde. Ele tinha câncer, era portador do vírus HIV, e, literalmente, apodrecia jogado num canto da prisão no interior de São Paulo. Diante do mau cheiro de suas feridas, ninguém queria ficar na mesma cela que ele. E a transferência não saía, por falta de escolta policial. Agindo em causa própria, o preso pediu Habeas Corpus. Por questões formais, o ministro negou o pedido, mas não encerrou o caso aí.
No mesmo despacho que negou o HC, deu ordens ao Ministério Público, à Defensoria Pública, e às secretarias estaduais de Administração Penitenciária e da Justiça para que viabilizassem os meios de atenuar o sofrimento do preso e criticou a inépcia administrativa. “Em virtude da extrema gravidade de seu estado de saúde, está sendo submetido a tratamento médico, cuja eficácia, no entanto, parece não se revelar satisfatória, consideradas as razões administrativas (sempre elas!!!) invocadas pelas autoridades penitenciárias, como a (recorrente) falta de escolta policial-militar, resultando na falta de atendimento a que o detento tem direito”, disse ele na ocasião.
Em 2009, não foi diferente ao se deparar com outro caso grave de omissão do poder público. Na ação, o Ministério Público pediu o pagamento de indenização para a mãe de uma criança portadora da Síndrome de West, doença que a deixou ao nascer com paralisia cerebral, cegueira, tetraplegia, epilepsia e malformação encefálica. As anomalias genéticas eram decorrentes de infecção por citomegalovírus, contraído por sua mãe durante o período de gestação, enquanto trabalhava no berçário de hospital público do Distrito Federal.
O ministro chorou ao dar a decisão para que o governo do Distrito Federal indenizasse a criança com uma pensão mensal de dois salários mínimos. “Esse caso mostra que há processos em que o próprio juiz se emociona e se angustia, tal o grave quadro de desamparo social que se abateu sobre um ser humano tão vulnerável, causado pela frieza burocrática do aparelho de Estado e agravado pela insensibilidade governamental. O STF, no entanto, restaurou a ordem jurídica violada e fez prevalecer, em favor de um menor injustamente posto à margem da vida, completamente ultrajado em sua essencial dignidade, as premissas éticas que dão suporte legitimador ao nosso sistema de Direito e aos nosso sentimento de Justiça!”
Primeira instância
Celso de Mello tomou posse como promotor em 3 de novembro de 1970, aprovado em primeiro lugar em um concurso com 1.118 concorrentes. De seus 19 anos no Ministério Público, passou 18 em primeira instância. Em tempos de generais presidente e de plena vigência do AI-5, não era fácil para um defensor dos direitos fundamentais, como ele sempre foi, evoluir na carreira. Antes de chegar ao Supremo, em 17 de agosto de 1989, nomeado pelo presidente da República José Sarney, passou também pela Secretaria de Cultura do estado de São Paulo, pela assessoria Jurídica da Casa Civil da Presidência da República, e pela Consultoria Geral da República.
Ao chegar ao Supremo, a recém-promulgada Constituição de 1988 ainda era interpretada à luz da jurisprudência, baseada nas antigas Cartas, herança da ditadura militar. Coube a Celso de Mello estabelecer marcos importantes para a virada de jurisprudência do tribunal, sobretudo no capítulo de garantias e direitos fundamentais.
A corte, presidida pelo ministro Neri da Silveira, tinha, à época, os ministros Aldir Passarinho, Carlos Madeira, Célio Borja, Francisco Rezek, Moreira Alves, Octávio Gallotti, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence. Nos 20 anos seguintes, Celso de Mello ainda dividiria a banca do STF com Carlos Velloso (substituto de Rezek), Ilmar Galvão (que substituiu Passarinho), Maurício Corrêa (no lugar de Brossard), Nelson Jobim, Ellen Gracie, Carlos Alberto Direito e Eros Grau, além dos dez atuais integrantes da corte.
Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 17 de agosto de 2012
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