Por Vladimir Passos de Freitas
Sorte e azar, creia-se ou não, permeiam nosso destino e levam-nos a situações de perplexidade. Somos racionais, mas, por vezes, o imponderável surge em nossas vidas. Nas atividades ligadas ao Direito, vemo-nos diante de situações que nos deixam perplexos. Todos os advogados experientes sabem que o mesmo pedido pode ser deferido ou não, dependendo de para quem seja distribuído.
Miguel Reale, na magistral obra Lições Preliminares de Direito, observava em 1983 que “diante dos mesmos fatos e com base nos mesmos textos legais, pode o trabalho de coordenação normativa ser diferente. Pode um magistrado citar um texto legal em conexão com outros preceitos e chegar a conclusões diferentes das aceitas por outro juiz, inspirado em critérios diversos” (Saraiva, 10ª. Ed., p. 172).
Da mesma forma, muitos já se viram diante de dois caminhos que se abrem e exigem uma escolha. Atônitos, perguntam, mesmo sabendo que não há resposta: que fazer? Narrarei alguns casos em que a sorte ou o azar se aproximou dos operadores jurídicos. Todos os casos são reais. Alguns terão o nome citado, outros não, tudo a depender da situação concreta. Os três primeiros são dos anos oitenta.
Justiça Federal do Paraná, uma tarde fria, uma excelente servidora (nível médio) comunica-me que passou em um teste seletivo da Telepar. Após as hesitações de praxe, pede exoneração do cargo e assume no outro emprego, cujos salários eram ligeiramente superiores aos da Justiça. Nunca mais a vi. Mas a companhia telefônica foi privatizada, acabou. Se existisse, não pagaria a ela mais do que R$ 3.000,00. Na Justiça Federal hoje, ela não ganharia menos do que R$ 12.000,00.
Ano de 1987, Santos, cria-se a Justiça Federal, começando com três Varas. Não havia funcionários, por isso a Justiça Estadual cederia um número mínimo. Muitos são convidados, quase todos recusam. Alguns assumem. Passam-se os anos. Hoje eles ganham mais do que o dobro, talvez o triplo, do que os colegas que não aceitaram.
Ele pertencia ao Ministério Público de São Paulo. Concorreu ao Tribunal de Alçada pelo quinto constitucional mas, apesar de brilhante, não foi escolhido pelo governador. Pouco tempo depois vai para Brasília, assessorar Saulo Ramos, então consultor geral da República. O Presidente Sarney queria indicar alguém para o STF e convidou o consultor. Este indica o assessor, sabidamente um grande constitucionalista. Em 1989, José Celso de Mello assume o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Se tivesse sido nomeado para o Alçada seu sucesso estaria muito aquém do alcançado no STF, onde foi o presidente e hoje é o decano.
Anos noventa, Porto Alegre, TRF da 4ª Região. Um réu preso está sendo julgado. Acusado de praticar usura contra dezenas de pessoas de uma cidade do interior do RS, ele é absolvido por 2 votos contra 1. Todavia, antes de ser anunciado o resultado, uma servidora vem correndo avisar que no Diário Oficial do dia havia sido publicada a aposentadoria de um dos Desembargadores que proferira voto absolutório. Chamam um substituto automático e o julgamento é totalmente renovado. Resultado, mantida a sentença condenatória, por maioria de votos (2 contra 1). O dia da publicação da aposentadoria foi a infelicidade do réu.
São Paulo, ela era procuradora do município e impetrara Mandado de Segurança para ver mantida uma verba de representação dada por um Prefeito e cassada pelo sucessor. Nas Câmaras de Direito Público do TJ-SP, as posições eram divergentes. Não havia decisões por unanimidade. Elas eram sempre por maioria. E como se tratava de Mandado de Segurança, não havia Embargos Infringentes. Ela não teve sorte. Perdeu por 2 a 1. No seu gabinete trabalhavam duas colegas mais afortunadas, pois seus recursos caíram em Câmaras onde predominava o entendimento oposto. Resultado, por muito tempo ela recebeu menos que suas colegas, muito embora todas fizessem o mesmo trabalho.
Brasília, uma renhida disputa por vaga no STJ. Tudo parecia indicar que seria ela. No último momento a situação muda e outra mulher é indicada para ministra, a primeira naquela Corte. Desestimulada, ela volta à rotina do seu Tribunal. Pensa em aposentar-se. Surge então a possibilidade de ser indicada uma mulher para o STF. No ano 2000, ela é a escolhida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Nomeada, Ellen Gracie Northfleet passou à história, sendo a primeira mulher na Corte Suprema do Brasil. Nela exerceu a presidência e depois aposentou-se, dignificando o cargo ocupado.
Candidato a juiz federal, foi reprovado na segunda fase. Conversando com um colega também reprovado, resolveram impetrar mandado de segurança no TRF. Cada um entrou com uma ação mandamental. O primeiro conseguiu a liminar, fez a prova oral, e acabou sendo aprovado. Sua ação foi julgada procedente e certamente o fato de ter sido aprovado ajudou na opinião dos magistrados. Seu colega não teve a mesma sorte. Não obteve a liminar no seu mandado de segurança. Foi reprovado. Sorte ou azar? Destino? Até onde influenciamos o nosso caminho?
Livros são escritos ensinando como passar no Exame de Ordem, em concurso público, como ser entrevistado para obter uma colocação como advogado, como se vestir, o que comer durante as provas dos testes seletivos, enfim, sobre tudo o que se possa imaginar para alguém alcançar o sucesso.
No entanto, ninguém consegue superar o imponderável. Nossos esforços, nossa dedicação extrema, são fatos essenciais para o sucesso. Mas, por vezes, a racionalidade cede lugar ao imprevisto. E nós, seres racionais, nos questionamos: por quê?
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2012
Miguel Reale, na magistral obra Lições Preliminares de Direito, observava em 1983 que “diante dos mesmos fatos e com base nos mesmos textos legais, pode o trabalho de coordenação normativa ser diferente. Pode um magistrado citar um texto legal em conexão com outros preceitos e chegar a conclusões diferentes das aceitas por outro juiz, inspirado em critérios diversos” (Saraiva, 10ª. Ed., p. 172).
Da mesma forma, muitos já se viram diante de dois caminhos que se abrem e exigem uma escolha. Atônitos, perguntam, mesmo sabendo que não há resposta: que fazer? Narrarei alguns casos em que a sorte ou o azar se aproximou dos operadores jurídicos. Todos os casos são reais. Alguns terão o nome citado, outros não, tudo a depender da situação concreta. Os três primeiros são dos anos oitenta.
Justiça Federal do Paraná, uma tarde fria, uma excelente servidora (nível médio) comunica-me que passou em um teste seletivo da Telepar. Após as hesitações de praxe, pede exoneração do cargo e assume no outro emprego, cujos salários eram ligeiramente superiores aos da Justiça. Nunca mais a vi. Mas a companhia telefônica foi privatizada, acabou. Se existisse, não pagaria a ela mais do que R$ 3.000,00. Na Justiça Federal hoje, ela não ganharia menos do que R$ 12.000,00.
Ano de 1987, Santos, cria-se a Justiça Federal, começando com três Varas. Não havia funcionários, por isso a Justiça Estadual cederia um número mínimo. Muitos são convidados, quase todos recusam. Alguns assumem. Passam-se os anos. Hoje eles ganham mais do que o dobro, talvez o triplo, do que os colegas que não aceitaram.
Ele pertencia ao Ministério Público de São Paulo. Concorreu ao Tribunal de Alçada pelo quinto constitucional mas, apesar de brilhante, não foi escolhido pelo governador. Pouco tempo depois vai para Brasília, assessorar Saulo Ramos, então consultor geral da República. O Presidente Sarney queria indicar alguém para o STF e convidou o consultor. Este indica o assessor, sabidamente um grande constitucionalista. Em 1989, José Celso de Mello assume o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal. Se tivesse sido nomeado para o Alçada seu sucesso estaria muito aquém do alcançado no STF, onde foi o presidente e hoje é o decano.
Anos noventa, Porto Alegre, TRF da 4ª Região. Um réu preso está sendo julgado. Acusado de praticar usura contra dezenas de pessoas de uma cidade do interior do RS, ele é absolvido por 2 votos contra 1. Todavia, antes de ser anunciado o resultado, uma servidora vem correndo avisar que no Diário Oficial do dia havia sido publicada a aposentadoria de um dos Desembargadores que proferira voto absolutório. Chamam um substituto automático e o julgamento é totalmente renovado. Resultado, mantida a sentença condenatória, por maioria de votos (2 contra 1). O dia da publicação da aposentadoria foi a infelicidade do réu.
São Paulo, ela era procuradora do município e impetrara Mandado de Segurança para ver mantida uma verba de representação dada por um Prefeito e cassada pelo sucessor. Nas Câmaras de Direito Público do TJ-SP, as posições eram divergentes. Não havia decisões por unanimidade. Elas eram sempre por maioria. E como se tratava de Mandado de Segurança, não havia Embargos Infringentes. Ela não teve sorte. Perdeu por 2 a 1. No seu gabinete trabalhavam duas colegas mais afortunadas, pois seus recursos caíram em Câmaras onde predominava o entendimento oposto. Resultado, por muito tempo ela recebeu menos que suas colegas, muito embora todas fizessem o mesmo trabalho.
Brasília, uma renhida disputa por vaga no STJ. Tudo parecia indicar que seria ela. No último momento a situação muda e outra mulher é indicada para ministra, a primeira naquela Corte. Desestimulada, ela volta à rotina do seu Tribunal. Pensa em aposentar-se. Surge então a possibilidade de ser indicada uma mulher para o STF. No ano 2000, ela é a escolhida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Nomeada, Ellen Gracie Northfleet passou à história, sendo a primeira mulher na Corte Suprema do Brasil. Nela exerceu a presidência e depois aposentou-se, dignificando o cargo ocupado.
Candidato a juiz federal, foi reprovado na segunda fase. Conversando com um colega também reprovado, resolveram impetrar mandado de segurança no TRF. Cada um entrou com uma ação mandamental. O primeiro conseguiu a liminar, fez a prova oral, e acabou sendo aprovado. Sua ação foi julgada procedente e certamente o fato de ter sido aprovado ajudou na opinião dos magistrados. Seu colega não teve a mesma sorte. Não obteve a liminar no seu mandado de segurança. Foi reprovado. Sorte ou azar? Destino? Até onde influenciamos o nosso caminho?
Livros são escritos ensinando como passar no Exame de Ordem, em concurso público, como ser entrevistado para obter uma colocação como advogado, como se vestir, o que comer durante as provas dos testes seletivos, enfim, sobre tudo o que se possa imaginar para alguém alcançar o sucesso.
No entanto, ninguém consegue superar o imponderável. Nossos esforços, nossa dedicação extrema, são fatos essenciais para o sucesso. Mas, por vezes, a racionalidade cede lugar ao imprevisto. E nós, seres racionais, nos questionamos: por quê?
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2012
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