sábado, 25 de fevereiro de 2012

Crítica de Teatro: Palácio do Fim


Por Edgar Olimpio de Souza, on 11-02-2012 16:41

Revista Stravaganza - Uma peça perturbadora e desconfortável, que mergulha no inferno do Iraque. Em uma das sequências mais terríveis, uma ativista política iraquiana descreve como ela e seus filhos foram brutalmente torturados durante o regime de Saddam Hussein. O título deste texto da dramaturga canadense Judith Thompson fornece a exata dimensão do terror: trata-se do antigo palácio real que abrigava a câmara de tortura do regime derrubado. Os três monólogos que formam o espetáculo, dirigido com elegância e sobriedade por José Wilker, ficcionalizam três histórias reais do Iraque antes e depois da invasão liderada pelos Estados Unidos (2003-2011). Preocupada com os danos colaterais do conflito armado, a autora leva para a cena uma militar coagida, um cientista traído e um adversário da ditadura de Hussein. São personagens inspirados em indivíduos que perderam a vida ou a carreira e acabaram se tornando símbolos da futilidade da guerra. Por meio dessa obra incômoda, ela lança um olhar arrepiante sobre como uma política belicista destrói e produz danos irreversíveis às pessoas.

O primeiro monólogo ilumina Lynndie England (Camila Morgado), a jovem sargento americana que chocou o planeta ao aparecer em imagens humilhantes abusando de prisioneiros iraquianos na prisão de Abu Ghaib – uma das fotos, por exemplo, a flagrava obrigando os detentos nus a formarem uma pirâmide humana. Grávida do ex-namorado, o também soldado Charles Graner, ela espera o julgamento por má conduta militar. Se condenada e encarcerada, vai perder tudo, inclusive a custódia de seu filho. Em suas reflexões, afirma que participou dos abusos para impressionar o namorado e seus outros companheiros. E que se excedeu porque ela mesma foi explorada e brutalizada na vida. No segundo, o protagonista é o cientista britânico David Kelly (Antonio Petrin), um especialista em armas químicas que relatou à BBC que o governo britânico havia adulterado seu relatório acerca das supostas armas iraquianas de destruição em massa. Após ser menosprezado durante uma investigação governamental, ele se prepara para a morte num bucólico bosque próximo a sua casa, na Inglaterra – teria se suicidado ou sido vítima de uma conspiração? Em suas últimas horas, ele se dedica a passar a limpo sua vida, em que revela as circunstâncias pelas quais apresentou falsas premissas para a guerra. No mais doloroso solilóquio, Nehrjas Al-Saffrah (Vera Holtaz), mulher de um político iraquiano comunista foragido, relata calmamente como ela e seus filhos foram perseguidos em Bagdá depois de Saddam Hussein assumir o poder, com apoio inicial dos Estados Unidos. As sessões de tortura aconteciam no Palácio do Fim, o macabro centro de interrogatórios do regime – ela chega a contar sobre o uso de um martelo que arrebentou o rosto de um de seus filhos. Curiosamente, ela morreu durante bombardeio norte-americano na Guerra do Golfo Pérsico (1991).

Reunidas, as três peças conferem uma perspectiva pessoal para os ultrajes e dissonâncias de uma guerra ilegítima e os seus descalabros. Os textos vão desembrulhando camada sobre camada de sentimentos até fazer o espectador perceber o peso profundamente enterrado de culpa do cientista, remorso da ativista e fragilidade moral da soldado. Apoiada na discrição e na contenção necessária, a encenação de Wilker garimpa a força e o que o que há de complexidade emocional nesse rico e denso material dramático. Não há ênfases e tons dramáticos nos trágicos eventos relatados, mas uma sobriedade calculada - as palavras simplesmente despejadas são o suficiente para penetrar a alma, sem qualquer histrionismo É uma direção preocupada em conceder escala aos discursos dos personagens, sem demonizá-los ou mitificá-los. Apesar da gravidade, o tema é tratado com sensibilidade, equlibrando-se entre o horror e a beleza. A montagem exibe um criativo jogo de luz e sombras, que casa com a leitura nuançada dos acontecimentos. Marcos Flacksman assina o cenário, composto de diferentes plataformas e um tecido ao fundo com as bandeiras dos Estados Unidos, Inglaterra e Iraque. Todos os elementos funcionam em comunhão. O elenco, que nunca contracena, captura a essência dessas figuras para compartilhá-la com o público, transformado numa espécie de juri ou divã. O espetáculo é desenhado para concentrar toda a atenção do espectador nos personagens e no que eles têm a dizer.

Os atores destilam desempenhos fortes, compondo retratos de personagens flagrados em processo de desnudamento psicológico. Camila Morgado é convincente ao incorporar uma mulher mal preparada e cínica, vítima e vilã em sua desesperada tentativa de se integrar a um grupo cuja doutrina é o exercício da crueldade. E que se indigna ao ver que na internet é mais ofendida pela sua falta de beleza que pelos seus atos. Antonio Petrin interpreta de forma intensa uma figura comovente, que convive com o fantasma de que poderia ter evitado a guerra e agora procura a redenção. Na pele da ativista, Vera Holtz vaza uma doçura quase humilhante, numa performance tão visceral quanto contundente. Tocante, o trio cumpre com maestria o papel de levar ao palco personagens que nutrem o desejo de serem livres novamente. Texto de impacto, que traz o lembrete assustador de que há muito a ser feito na busca da paz. Impossível não sentir um nó na garganta diante da visão da barbárie.

(Edgar Olimpio de Souza – eolimpio@uol.com.br)
(Foto Guga Melgar)

Avaliação: Ótimo

Palácio do Fim
Texto: Judith Thompson
Direção: José Wilker
Elenco: Antonio Petrin, Camila Morgado e Vera Holtz
Estreou: 20/01/2012
Sesc Consolação (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque. Fone: 3234-3000). Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. Ingressos: R$ 8 a R$ 32. Em cartaz até 11 de março.

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