segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Teatro Crítica: Palácio do Fim

Jornal do Brasil
Ana Lúcia Vieira de Andrade

Cotação: *** (Ótimo)

Uma das funções mais nobres do teatro sempre foi a de ser um espelho de seu tempo. Entretanto, em eras pós-modernas, muitos daqueles que criam essa arte e a fazem frutificar encontram dificuldades para dar a esse espelho sua dimensão social e política exata, visto que a solidez da significação na arte andou se perdendo numa competição com a maquinaria industrial do mundo, já plenamente estetizada. A abundância de signos simultâneos que fazem parte da nossa vida cotidiana passa a competir com a própria teatralidade, que acaba por colocar-se num lugar de dúvida a respeito de seus objetivos e intenções. Assim, por exemplo, trazer aos palcos temas muito explorados pelas mídias jornalísticas, audiovisuais e impressas, carrega sempre a questão de como emprestar-lhes frescor, de como abordá-los a partir de um enfoque mais plenamente crítico, que proporcione reflexões duradouras, para além daquelas já resultantes das abordagens dos meios de comunicação. Essa tarefa não é realizada com êxito por muitos dos criadores que se aventuram em tal direção. Contudo, felizmente para o público carioca, este não é o caso de Palácio do Fim, peça de autoria da canadense Judith Thompson, que apresenta a Guerra do Iraque a partir de um olhar que se abre para a análise das razões dos que engendram o conflito e para o desvendamento da experiência humana daqueles cujo aniquilamento começara já no regime de Saddam Hussein.


Baseada em relatos verídicos, Palácio do Fim, nome que faz referência à antiga sede da câmara de tortura de Saddam Hussein, apresenta três visões particulares sobre o drama iraquiano. Com direção de José Wilker e elenco formado por Antônio Petrin, Camila Morgado e Vera Holtz, a peça descreve com precisão e intensidade como diferentes partes de um mesmo conflito podem ser igualmente destruídas por ele.

No primeiro monólogo, denominado “Minhas pirâmides”, Camila Morgado dá voz a Lynndie England, oficial do exército americano acusada na corte marcial pelo abuso de prisioneiros em Abu Ghraib. Grávida do ex-namorado, ela reflete sobre as fortes imagens que expuseram ao mundo as grotescas técnicas de tortura que arquitetou. “Colinas de Horrowdown”, segundo monólogo, tem como protagonista o Dr. David Kelly ? vivido por Antonio Petrin ?, inspetor de armas britânico que relatou à BBC que não havia armas de destruição em massa no Iraque. Após ser atacado e humilhado pelo governo britânico, o cientista se prepara para a morte no cenário bucólico do bosque próximo a sua casa, na Inglaterra. Suas últimas horas são dedicadas a um discurso de mea culpa, em que revela as circunstâncias pelas quais apresentou falsas premissas para a guerra. A peça termina com “Instrumentos de angústia”, testemunho de Nehrjas Al Saffarh, interpretada por Vera Holtz, ativista iraquina membro do Partido Comunista. Com a doçura e o equilíbrio da maturidade, ela recorda como sobreviveu à polícia secreta de Saddam Hussein e aos horrores aos quais foi submetida no Palácio do Fim.

O cenário de Marcos Flaksman, os figurinos de Beth Filipecki e iluminação de Maneco Quinderé operam em perfeito equilíbrio com o texto, proporcionando uma leitura muito adequada das personagens e de seus contextos. Camila Mogado, Antônio Petrin e Vera Holtz, em atuações sublimes, com destaque para os dois últimos, nos mostram como se produz e se internaliza o ódio, a irracionalidade mesma que o deflagra, tão próxima daquela que gerou o próprio holocausto, onde o limite do humano parece perder a importância e um retorno à barbárie parece sobrepor-se a qualquer tentativa de racionalização.

A direção de José Wilker, fiel aos objetivos do texto, se preocupa em dar alcance aos discursos das personagens, confiando plenamente na capacidade do material literário em revelar ao mesmo tempo beleza e horror. Espetáculo importante. Forte. Para os que não temem abrir os olhos.

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