POR HENRIQUE AUTRAN DOURADO
Transcrito do jornal O Progresso de Tatuí, edição de 22.05.2011
Quando eu cursava o colégio, haviam sido banidos das estantes da biblioteca livros como “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego, e “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino (ambos por trechos que hoje caberiam na novela das 18h). E toda a literatura que mesmo de longe mostrasse uma sombra de ateísmo, como “Esperando Godot”, de Samuel Becket, ou as peças teatrais de Eugène Ionesco. Helder Câmara (o “bispo vermelho”, diziam os militares), e qualquer ideia libertária, nem pensar. Bem-vindas eram as elegias de Rainer Maria Rilke, José de Alencar (com as devidas cautelas para “Iracema, virgem dos lábios de mel”) e Machado de Assis – sendo este último o autor da mais sublime e ambígua personagem, a mais linda dúvida de fidelidade da história da língua portuguesa: a Capitu, de “Dom Casmurro”.
Entre as obras de leitura estimulada, além da Bíblia, claro, havia o “Confiteor”, de Paulo Setúbal, nascido em Tatuí. Óbvio, crianças (e adolescentes...), sempre tendem a não gostar da verdura empurrada por suas mães, uma reação natural de negação aos costumes da geração anterior (costume, creio eu, em franco desuso nos dias de hoje). Por isso, considerávamos Setúbal carola, papa-hóstia e outros adjetivos não muito lisonjeiros – e oferecer-nos Setúbal soava como servir um prato de rabanete com chuchu e cenoura.
Passaram-se os anos, e resolvi ler “A Marquesa de Santos”, do tatuiano, desfazendo-me de preconceitos arraigados a certo ranço da velha esquerda colorida dos anos 1960/70. Despido dessa couraça, pude aproveitar mais tarde até Ezra Pound, escritor norte-americano que, mudando-se para a Itália, rendeu-se ao fascismo de Mussolini, de quem foi árduo defensor. E curti o que Pound tinha de bom: o corte da boa poesia e a costura do talento.
Foi neste ano de 2011 que o regente da Banda Sinfônica Jovem do Conservatório, o conhecido Pereira, presenteou-me com uma “Collecção” de partituras do compositor Mello Dias (pseudônimo), com letras de Paulo Setúbal, intitulada “Sê Feliz”. Saborosas já são as instruções do compositor para os intérpretes, escritas ao final de cada obra, ao lado do texto da letra: “não é para dansa, e portanto não pode ser executada ao rigor mecânico do compasso”. Ele as pretendia mais livres: “...a envolveria em vulgar monotonia”. Dias, em respeito à letra de Setúbal, deu-lhe caráter de “chanson”, suave e fluido como a poesia, apesar do subtítulo “tango-canção”, provavelmente simples alusão fortuita à sensual dança portenha.
A letra, de 1929 (imagine!), é uma pérola de insinuações que transpassa o simples romantismo: “És noiva ... Em breve há de raiar o dia (...) Irás à egreja... E, num altar formoso / Branca de anseio, tremula de goso / verás florir teu sonho de mulher”. E segue: “Oh, nesta noite, o baile terminado / ao te despires para o teu noivado (...) Tu hás de ouvir, na alcova silenciosa / o tom queixoso d’uma voz queixosa / que te dirá baixinho: Sê feliz!”.
Em “Sob um Pecegueiro”, Setúbal, com uma melodia agora mais ligeira de Mello Dias, revela que “Foi desde então que na minh’alma eu trouxe / como lembrança deste amor fagueiro / esse beijinho estaladinho e doce /que nós trocámos sob o pecegueiro”. Uma delícia de brincadeira, que em outra peça, “Certa Vez”, revela o autor enamorado, dizendo “Não cores desse jeito! / Era de noite. Arfava-nos o peito /e ardia em nós um languido desejo / Tomei-te as mãos... Sorriste / E aí, como num assomo / As nossas boccas, sem sabermos como / Famintamente uniram-se num beijo!”. A melodia vinha em um lânguido fá menor, quando, ao surgir aquela palavra mágica final, “beijo!”, abre-se um brilhante dó maior, em cadência plagal (não as plagas de que falou Castro Alves em “Espumas Flutuantes”, mas a referência a um tipo de terminação musical que sugere elevação, grandeza, e vinda de súbito!).
Descobri agora, muitos anos depois do colégio, um Setúbal que, à frente de seu tempo, e com sensualidade bem adiante daqueles seus anos, comungava seus romances com Vinicius de Morais, que escreveria muito depois (em “Ternura”): “Eu te peço perdão por te amar de repente / Embora o amor seja uma velha canção nos teus ouvidos / Das horas que passei à sombra dos teus gestos / Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos”.
Transcrito do jornal O Progresso de Tatuí, edição de 22.05.2011
Quando eu cursava o colégio, haviam sido banidos das estantes da biblioteca livros como “Menino de Engenho”, de José Lins do Rego, e “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino (ambos por trechos que hoje caberiam na novela das 18h). E toda a literatura que mesmo de longe mostrasse uma sombra de ateísmo, como “Esperando Godot”, de Samuel Becket, ou as peças teatrais de Eugène Ionesco. Helder Câmara (o “bispo vermelho”, diziam os militares), e qualquer ideia libertária, nem pensar. Bem-vindas eram as elegias de Rainer Maria Rilke, José de Alencar (com as devidas cautelas para “Iracema, virgem dos lábios de mel”) e Machado de Assis – sendo este último o autor da mais sublime e ambígua personagem, a mais linda dúvida de fidelidade da história da língua portuguesa: a Capitu, de “Dom Casmurro”.
Entre as obras de leitura estimulada, além da Bíblia, claro, havia o “Confiteor”, de Paulo Setúbal, nascido em Tatuí. Óbvio, crianças (e adolescentes...), sempre tendem a não gostar da verdura empurrada por suas mães, uma reação natural de negação aos costumes da geração anterior (costume, creio eu, em franco desuso nos dias de hoje). Por isso, considerávamos Setúbal carola, papa-hóstia e outros adjetivos não muito lisonjeiros – e oferecer-nos Setúbal soava como servir um prato de rabanete com chuchu e cenoura.
Passaram-se os anos, e resolvi ler “A Marquesa de Santos”, do tatuiano, desfazendo-me de preconceitos arraigados a certo ranço da velha esquerda colorida dos anos 1960/70. Despido dessa couraça, pude aproveitar mais tarde até Ezra Pound, escritor norte-americano que, mudando-se para a Itália, rendeu-se ao fascismo de Mussolini, de quem foi árduo defensor. E curti o que Pound tinha de bom: o corte da boa poesia e a costura do talento.
Foi neste ano de 2011 que o regente da Banda Sinfônica Jovem do Conservatório, o conhecido Pereira, presenteou-me com uma “Collecção” de partituras do compositor Mello Dias (pseudônimo), com letras de Paulo Setúbal, intitulada “Sê Feliz”. Saborosas já são as instruções do compositor para os intérpretes, escritas ao final de cada obra, ao lado do texto da letra: “não é para dansa, e portanto não pode ser executada ao rigor mecânico do compasso”. Ele as pretendia mais livres: “...a envolveria em vulgar monotonia”. Dias, em respeito à letra de Setúbal, deu-lhe caráter de “chanson”, suave e fluido como a poesia, apesar do subtítulo “tango-canção”, provavelmente simples alusão fortuita à sensual dança portenha.
A letra, de 1929 (imagine!), é uma pérola de insinuações que transpassa o simples romantismo: “És noiva ... Em breve há de raiar o dia (...) Irás à egreja... E, num altar formoso / Branca de anseio, tremula de goso / verás florir teu sonho de mulher”. E segue: “Oh, nesta noite, o baile terminado / ao te despires para o teu noivado (...) Tu hás de ouvir, na alcova silenciosa / o tom queixoso d’uma voz queixosa / que te dirá baixinho: Sê feliz!”.
Em “Sob um Pecegueiro”, Setúbal, com uma melodia agora mais ligeira de Mello Dias, revela que “Foi desde então que na minh’alma eu trouxe / como lembrança deste amor fagueiro / esse beijinho estaladinho e doce /que nós trocámos sob o pecegueiro”. Uma delícia de brincadeira, que em outra peça, “Certa Vez”, revela o autor enamorado, dizendo “Não cores desse jeito! / Era de noite. Arfava-nos o peito /e ardia em nós um languido desejo / Tomei-te as mãos... Sorriste / E aí, como num assomo / As nossas boccas, sem sabermos como / Famintamente uniram-se num beijo!”. A melodia vinha em um lânguido fá menor, quando, ao surgir aquela palavra mágica final, “beijo!”, abre-se um brilhante dó maior, em cadência plagal (não as plagas de que falou Castro Alves em “Espumas Flutuantes”, mas a referência a um tipo de terminação musical que sugere elevação, grandeza, e vinda de súbito!).
Descobri agora, muitos anos depois do colégio, um Setúbal que, à frente de seu tempo, e com sensualidade bem adiante daqueles seus anos, comungava seus romances com Vinicius de Morais, que escreveria muito depois (em “Ternura”): “Eu te peço perdão por te amar de repente / Embora o amor seja uma velha canção nos teus ouvidos / Das horas que passei à sombra dos teus gestos / Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos”.
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