domingo, 22 de maio de 2011

“Música, Doce Música”, e a saúde pública

por HENRIQUE AUTRAN DOURADO
Do jornal O Progresso de Tatuí, edição de 01.05.2011

Oportuno o título desse livro do Mário de Andrade (de 1933, entre aspas, acima), tão suave, para abordar brevemente um assunto de enorme importância. Existe um fenômeno (diria: vício) social brasileiro que precisa ser combatido. A iniciativa da cidade de São Paulo, cunhada com o nome inteligente de “Lei Cidade Limpa”, é louvável e merece aplausos, porém impraticável devido às dimensões da capital, falta de contingente e aplicabilidade das multas – isso, sem falar que a lei (“todos são iguais perante a lei”: Constituição da República) já “nasceu” violada: há exceção aos templos religiosos. Mas ruído é ruído.

A poluição sonora, quase apagada pelas garrafas “pet”, a fumaça e a economia da água – todos relevantes, claro -, de uns anos para cá tem formado uma geração de surdos. Refiro-me, neste espaço, e não por acaso, aos arsenais sonoros instalados em veículos, cujo valor, entre “bazucas”, “woofers”, “tweeters”, módulos e equalizadores, pode superar o dos próprios velhos automóveis em que geralmente são instalados.

Deixo aos psicólogos a análise da necessidade de autoafirmação, essa exibição fálica dos que perturbam com barulho a paz alheia. Mesmo com os vidros fechados, eles nos fazem sacolejar dentro de nossos veículos com o deslocamento de ar dos sons graves de suas máquinas de tortura. Esses agressores, devido ao alto nível de decibéis, terão progressivamente afetada sua própria percepção de sons agudos, até chegar aos médios e, ao final, a uma surdez precoce - parcial ou total, mas irreversível (com a palavra, agora, os médicos otorrinos). Mas não vale rogar praga contra os “barulheiros”: sem perceber, os portadores dessas máquinas de violação à privacidade, ao bom gosto (as músicas, quase sempre, são péssimas) e ao respeito, a cada grau dessa perda auditiva passarão a aumentar gradativamente o volume de suas “câmaras de surdez”, afetando-nos ainda mais.

Vejo sempre uma lanchonete, no meu trajeto para o clube XI, que ostenta placas informando “proibido som automotivo”. Como não possui bloco de multas, deve, creio eu, e em prejuízo de seu próprio caixa, deixar de servir os que ignoram essa vedação, pela paz e silêncio. Em inúmeros lugares - nas praças, nas calçadas, nas esquinas, nos bares e lanchonetes -, portas ou porta-malas abertos jogam seguramente muito mais do que cem decibéis nos ouvidos de quem passa (recuso-me, como músico, a usar certa nomenclatura médica que agora chama ouvido de “orelha”, e cordas vocais de “pregas” vocais – com todos os péssimos segundos sentidos que se possa emprestar à expressão).

Lesões irreversíveis (chamadas “Pair”) podem ser causadas pela exposição dos ouvidos a ruídos a partir de 75 decibéis. Um estrondo pode causá-las em uma rápida exposição; mesmo em nível moderado, lesões podem acontecer por exposição prolongada. Ao contrário do que acontece com a pele, por exemplo, células são mortas e não são repostas. Pior ainda: a cada grau de surdez, na região média do chamado espectro audível (20 a 20 mil Hz), há uma perda de sons harmônicos agudos (como a cidade é abarrotada de músicos, se você não sabe o que significam essas expressões, não hesite em perguntar a um deles o que querem dizer). A perda dos harmônicos agudos acarreta também a perda da qualidade da audição, ou seja, a percepção da beleza e das nuances dos sons musicais. Pior: com a surdez, quase sempre vem outra doença, o “tinnitus”, sinônimo de um zumbido constante e infernal.

A Capital da Música sofre diante do excesso de ruído, por mais contraditório que possa parecer. O povo tende a falar cada vez mais alto, padarias elevam o som (que ninguém entende) de suas tevês; fregueses têm de conversar ao pé do ouvido ou aos gritos.

Com o aumento da frota de veículos, de construções, etc., estamos à mercê desse tipo de agressão, como em boa parte das cidades brasileiras. Uma proibição – que, claro, deve ser alvo de fiscalização com pequenos aparelhos portáteis chamados decibelímetros – afetaria as práticas das lojas populares e carros de som – e mudaria táticas das campanhas comerciais e políticas (porém, ambas concorreriam em igualdade de condições). Nossa eficiente GCM poderia carregar por aí uns dez desses aparelhos (ao preço de uns R$ 200 cada). Todos devem conhecer o perigo da poluição sonora e fazer os legisladores compreenderem sua gravidade. Dos músicos, dos idosos, das crianças, dos que querem paz, dos poetas, dos amantes e dos que gostam da boa música viriam os mais saudáveis aplausos.

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