CRISTINA SIQUEIRA
Puxo a cortina, espio através da vidraça que reflete inocência, amor, nostalgia. Um ramo de melindre adornando o bolo de festa, simples, mas feito em casa pelas minhas mãos. Bolo macio e leve, assado em forma redonda, untada com manteiga.
O assoalho de tábuas largas e corridas encerado com cera Colmeína, lustrado com escovão, a escada de madeira que conduzia aos quartos. Pé direito alto, a mesa posta sobre a toalha da Ilha da Madeira, louça inglesa de porcelana trifoliada, os frisos dourados.
Havia amor nos gestos, nos olhares correspondidos, nos rostos que se sondavam buscando sentimentos. Havia pai, mãe, avós e raios de luar que cruzavam o assoalho, as paredes, o sofá vermelho.
Apressados os anos se passaram. Meu tesouro sepulto. A infância; a adolescência.
Bato com saudade no coração da casa. Pálida é a paisagem, opaca e desbotada pelo passar do tempo.
Para sempre e sempre escuto o badalar do sino da Igreja da Matriz, que me trazia um sentimento de importância. Todas as noites subia pela rua Prudente um homem e seu cavalo riscando o paralelepípedo. Bem cedinho, ainda noite, passavam as moças da fábrica de tecelagem, os cabelos brancos de algodão em fiapos. Um caminhão descarregava mercadorias no armazém do Elias Sallum. O guarda noturno apitava.
Minha mãe, com seus olhos doces e brilhantes, me cobria, abençoava e dizia: “Dorme com os anjos.” Os aposentos escuros, os sonhos claros. O afeto é o que aprendi a ver no olhar das pessoas.
Nas tardes, pela janela, eu olhava a vida e ia além daquela rua, além dos filmes que assistia na sessão das seis de domingo no Cine São Martinho. E me sentia Gigi, ouvia “Moon River” e jurava ser Audrey Hepburn, com seu nome escrito em letra minúscula nas caixas de presente do filme “Bonequinha de Luxo”. Balas de café e coco. A bilheteira maquiada, o batom carmim, a pele empoada. Os vestidos de organdi com laço atrás, esquecidos no guarda-roupa. Vestia então blusa de banlon, saínha de tergal e sapatilhas Jezebel. Sutiã para menina-moça meia taça da Mourisco. Calcinhas de algodão.
O porão, meu porãozinho com suas paredes caiadas e o chão de cimento cru com vermelhão.
O quadro negro, giz branco, livros, cadernos; a mesa rústica forrada com papel mata-borrão verde.
O espelho na penteadeira de moldura cor de ébano, o espelho para me ver de corpo inteiro; a luz mortiça do abajur de seda cor-de-rosa. O botão de pérola, o alfinete de brilhante. Leque, porta-joias, frascos de perfume e, sobre a cômoda, os santos, todos os santos que nos conduziam em fé. Os casacos se repetiam pelo inverno agudo que gelava até os ossos. O suéter de caxemira azul. As paredes choravam umidade.
Frutas vermelhas na cesta, a penca de bananas maçã - vovó me ensinava a escolher os ovos pelo tamanho -, pés de chicória, abobora de doce, os queijos, azeite extra virgem, folhas de louro, vinho do Porto. O mercado, a carroça de leite à porta. Palmas, sinetas, pregão de rua. Casais que desciam a rua lado a lado. Pessoas simples descendo para o mercado. O armazém de meu pai na esquina, o quintal enorme, em que eu, sem saber, descobria a possível brincadeira de ser feliz sozinha.
Tudo significava os nomes das lojas, das ruas e praças, as casas e seus donos. As crianças obedientes, de olhar atento, não se atrasavam para o almoço e jantar. Os sapatos eram limpos no capacho à entrada das casas.
Domingo após domingo o guaraná caçulinha para acompanhar a macarronada feita com molho de tomates frescos, uma pitada de açúcar e horas de cozimento. A voz de vovó que dizia: “Venha almoçar que esfria, lave as mãos antes.” A fritada de palmito natural com salsinha, a maionese feita em casa, o frango de sítio com molho curto de ervilhas frescas.
As palavras fiam este passado composto de fragmentos que referenciam meu universo particular. São gestos, palavras, olhar de todos que me fizeram existir assim como sou.
As amigas de mamãe, os sisudos senhores que jogavam xadrez com meu pai, as vizinhas, as vendedoras das lojas, minhas amadas professoras. E me lembro das vozes, do jeito amável com que estas pessoas se dedicavam umas às outras. As imagens são um borrão sépia que se estende pela rua Prudente e adentra as casas e corações que permanecem vivos e pulsam. Vejo Maria e seus quatro filhos, Erasmo, Marcelo, Guiga e Cássia, dobrando a esquina. Vejo Maria dirigindo a Kombi alemã, fazendo compras na Elze Vanni, indo prosear lá em casa, me ensinado a decorar o bolo de noivado, falando da moda de São Paulo, das camisolinhas de flores com que Donata vestia Donatinha. Escuto a voz de Nádia chamando Eliana e Eliazinho, depois contando de suas viagens, sempre elegante, falando filhos e netos, e depois pranteando o neto jovem, que não voltou do passeio a Bonito, e ela, inconsolável. Com doçura, me toco com o estilo manso e a segurança de dona Cleide, ensinando psicologia e prática no curso normal. E que alegria o sorriso perene de dona Conceição, mãe da Sheila e da Samira.
É esta a minha bagagem.
Quando me ajoelho, quando mergulho neste infinito antigo que me sustenta a alma, abraço pessoas amadas, aquelas que partiram e que, pelo amor, voltarei a ver em retalhos encolhidos, escondidos nas cavidades vermelhas do meu coração. E me importo com os detalhes desta época que nos fazia especiais - e o que ser senão os detalhes? -, a agradável sutileza dos detalhes. A diferença se faz dos detalhes.
Mas, escutem! Por favor, escutem!
Quero dizer que deixo as palavras caírem sobre a folha do caderno feito chuva fina para aguar as flores que permanecem calmas, brilhantes sobre a terra fofa, as pétalas coriscando cores ar adentro. Flores-mulheres que me ensinaram nuances, tons, aromas. Mulheres com fervor e dignidade de cumprir o rito da existência como mulheres que amaram, riram, choraram, educaram filhos, assumiram suas vidas com trabalho árduo e dedicação às suas famílias.
Lá fora, os pingos grossos batem na vidraça de outras janelas maiores, outra rua, outra casa, outro tempo.
E assim seguem as histórias e os mergulhos nesta água do sentir de inúmeros reflexos.
Dedico esta página a Maria Negrão Peixoto, dona Conceição Seba, professora Cleide Orsi e dona Nádia Nabhan Sallum.
Para ver a matéria no site do jornal O Progresso de Tatuí, clique no título
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