domingo, 16 de maio de 2010

Artigo de Henrique Autran Dourado, no jornal O Progresso de Tatuí de 02.05.2010


POR HENRIQUE AUTRAN DOURADO
“Tudo o que temos de bom veio dos neuróticos”
“Foram eles que compuseram as obras-primas e fundaram as religiões. Jamais o mundo saberá o quanto sofreram para lhe dar tudo o que deram” (Marcel Proust, 1871/1922).
A lista dos músicos loucos, pouco equilibrados ou simplesmente neuróticos é enorme. Veja Haydn, empoado e com sua peruca, cheio de anéis, e Beethoven, que dizia que os arbustos de Viena eram um bando de carneiros mortos. Bach teve 20 filhos e lamentava a melhoria no saneamento básico em Erfurt, razão da queda nas encomendas fúnebres – inclusive, a dos natimortos. Gioacchino Rossini, de óperas como “O Barbeiro de Sevilha”, era um preguiçoso contumaz; compunha deitado, e quando uma folha de papel caía, preferia reescrevê-la. Seu lema: “amar e comer, beber e amar, são os quatro atos da ópera da vida”.
Existe uma linhagem de brasileiros geniais: Eleazar de Carvalho, falecido em 1996, aos 84 anos, regeu de touca porque a tintura que usava no cabelo acabara e teve de comprar uma de má qualidade (já Villa-Lobos regeu de chinelos por causa dos joanetes). Camargo Guarnieri, mesmo bem passado dos 80, dizia que o segredo da vitalidade eram o vinho e as mulheres (e Eleazar dizia que havia sido criado “com leite de cabra”). Magdalena Tagliaferro, a insuperável pianista brasileira falecida em 1994, aos 93 anos, agradeceu o apartamento que, do alto de seus 80 anos, o governo francês lhe emprestara em comodato por 20 anos – e chorou copiosamente perguntando o que faria para o resto da vida, depois de encerrado o prazo...
Figura histórica da antiga Osesp, o violinista Coppola fechava as torneiras do banheiro com os cotovelos “para não pegar bactérias” – e se gabava da boa saúde porque escolhia bem “suas mulheres”. Isso, aos 70 e tantos. Escolhia bem? Sei lá. Sua manteúda de botas brancas e minissaia da Nestor Pestana circulava tanto no Teatro Cultura Artística quanto nas boates como a Kilt, de “famílias quase boas”, em pleno bas-fond paulistano.
Violinista como o Coppola, John, do Teatro Municipal, veio de família judaica de Nova Iorque. Às vésperas do nascimento de sua filha, criou-se uma disputa familiar para a escolha do nome: a avó não abria mão de um prenome judaico, Esther; o filho queria o nome de uma amiguinha, Mariana, e a esposa, francesa que havia se convertido à umbanda, queria um de sua crença, Janaína (Yemanjá). Sem mais pensar, nascido o rebento, John foi ao cartório e saiu de lá com a certidão: Esther Mariana Janaína, pondo sabiamente fim à discussão.
O contrabaixista Robert Arnold (de apelido “Mister Hulk” - imagine o tamanho da peça) arrumou uma vaca (“o leite estava muito caro”), e Eleazar dizia à orquestra que iria aumentar o salário dele para que comprasse “mais feno para a vaca”. Só que não havia touro por perto, daí que... nem uma gotinha sequer. Foi criar abelhas, mas uma picada bastou: era alérgico. Por último, passou aos cavalos, mas levou um tombo e teve uma lesão craniana.
Na Escola de Música do Teatro Municipal, que eu dirigia em São Paulo, um dia afixei na porta da secretaria uma placa de madeira entalhada com os dizeres: “Bem-vindos a este hospício. Aqui, somos todos loucos – uns pelos outros”. E no Encontro Internacional de Madeiras de Orquestra de 2010, esteve aqui um francês extraordinário, Jacques Zoon, que foi solista da Sinfônica de Boston e primeira flauta da Filarmônica de Berlim – segundo o nosso Beltrami, “ele é o cara”. Veio com dois filhos, entre 9 e 12 anos; o menino usa cabelos até o meio das costas e a menina... bom, a menina apareceu no concerto com uma pena na cabeça e uma saia que ela mesmo fez, bordada com folhas de árvore. Ambos não vão à escola: a mãe, Iseut Chuat, é quem ensina (no Brasil, daria cadeia).
Pois foram todos ao Rio de Janeiro e trouxeram de volta um monte de conchinhas. Ao abrirem uma delas, acharam um marisco. Criaram o maior salseiro com a produção de Tatuí porque exigiam que a concha fosse levada de volta para seu habitat. Esses músicos franceses são inteiramente desvairados. Tous complètement fous.

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