sábado, 3 de abril de 2010

HAITIANO ENFRENTA BUROCRACIA PARA ESTUDAR NO CONSERVATÓRIO DE TATUÍ


Do jornal O Progresso de Tatuí, edição de hoje

Buscar na música um caminho para auxiliar na reconstrução do Haiti. É com esse sonho e um oboé na mochila que o haitiano Jean Gerald, 24, desembarcou em Tatuí no mês de março. Aprovado para ingressar no curso de oboé, ele ainda sofre com mais uma pedra no caminho: o entrave burocrático, que o impede de trocar o status de seu visto para permanecer no país.
O jovem foi aprovado para o curso do Conservatório de Tatuí na segunda-feira, 29. O teste consistiu na execução de um concerto de Telemann perante a uma banca julgadora. A performance de Gerald impressionou os professores da instituição.
Jean Gerald sobreviveu aos terremotos que assolaram o Haiti, veio ao Brasil a convite de Alex Klein (um dos maiores oboístas do mundo, com cinco Grammy no currículo) e, em Tatuí, constrói um sonho. “Quero me formar aqui no Conservatório de Tatuí e, quando terminar, tocar em uma orquestra. Pretendo ir aos Estados Unidos e, lá, fazer meu mestrado. Eu acredito no poder da música e minha missão é estabelecer, em Porto Príncipe, um festival, convidando músicos eruditos de diferentes países”, afirmou ele.
Jean Gerald chegou ao país dois meses depois do terremoto que atingiu o Haiti – com epicentro em Porto Príncipe – e vitimou milhares de pessoas. Gerald perdeu três amigos com o desmoronamento da escola de música onde costumava lecionar. Sua primeira vinda ao Brasil ocorreu por intermédio do oboísta Alex Klein, a quem só veio conhecer pessoalmente em solo brasileiro. “Enviei um DVD para a Universidade de Ohio, onde Alex Klein lecionava, tentando uma vaga. Apesar de ter conseguido ser aprovado, não tive condições financeiras de estudar lá, pois não oferecem bolsas a estrangeiros”, contou.
Depois da desistência dos estudos em Ohio, Jean Gerald foi convidado por Klein a participar do Femusc (Festival de Música de Santa Catarina), no início do ano. A tragédia interrompeu os contatos. “Cheguei a pensar que ele tivesse sido uma das vítimas”, comentou Klein.
Com o restabelecimento do contato e a abertura de novas vagas a oboístas no Conservatório de Tatuí, Klein indiciou o Brasil a Gerald. “Meu compromisso, embora informal, é, uma vez ao mês, ir a Tatuí para dar aulas a Jean Gerald e a qualquer aluno interessado do Conservatório de Tatuí”, disse ele.
Aos 24 anos, o jovem haitiano sabe muito bem que as coisas nem sempre são tão fáceis na vida. Para se tornar um oboísta, não contou com nenhum auxílio: é autodidata. “Nunca nem tinha visto o instrumento. Na verdade, uma vez estava escutando uma rádio e ouvi um som diferente e bonito. Fiquei curioso e descobri que se tratava de um instrumento chamado oboé. Fui atrás, e encontrei o oboé numa escola de música no Haiti, mas não tinha ninguém que o tocasse. Me deram na mão e eu comecei a aprender sozinho, com as técnicas que já tinha com o sax, instrumento que toco desde a adolescência”, explica, em inglês, o músico (ele fala também criolo e francês - línguas usadas no Haiti - além de italiano, espanhol e já se virar bem em português, apesar de estar por aqui há apenas um mês).
Após muito estudo, Jean começou a destacar-se e cavou a oportunidade de ir estudar nos Estados Unidos (uma professora americana, da Lawrence University, que foi ao Haiti, ficou impressionada com Jean e fez o convite). Lá passou por algumas universidades e ficou sabendo do trabalho do brasileiro Alex Klein, considerado um dos maiores oboístas do mundo, e que vivia na ocasião nos Estados Unidos.
No Conservatório de Tatuí, Jean Gerald disse sentir-se “à vontade”. “Gosto muito do Brasil e da escola. Todos são muito receptivos. Não me sinto diferente aqui. A música é muito boa e todos os grupos que vi têm performance de alta qualidade”, afirmou.
Burocracia
A aprovação no curso do Conservatório de Tatuí não significa que Jean Gerald consiga permanecer no país e realizar seus sonhos.
Na segunda-feira, 29, horas depois da aprovação, ele dirigiu-se até a Polícia Federal em Sorocaba para conseguir mudar o visto de turista para o de estudante – condição fundamental para que possa iniciar as aulas na escola de música. Lá, o funcionário afirmou que Gerald somente conseguiria o visto se retornasse ao Haiti e, na embaixada de lá, solicitasse a alteração. Detalhe: todo o país está devastado, inclusive o prédio da embaixada foi destruído.
Para o diretor executivo do Conservatório de Tatuí, Henrique Autran Dourado, a situação poderia ser solucionada com maior sensibilidade, devido ao estado de exceção do país após a tragédia. Ele chegou a fazer contato com Frei Betto e pediu ajuda ao ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. “Eles sugerem que o Jean volte para o seu país, como se o Haiti fosse logo ao lado, fosse Ilha Bela. E outra: eles pedem para se dirigir à embaixada, mas a embaixada do Brasil no Haiti está em escombros!”, ressalta Dourado. “Temos um presidente que venceu as dificuldades para chegar onde está e acho que se sensibilizará pela questão. Espero que a situação se resolva sem grandes percalços”, acrescentou.
Para ele, “o Brasil só ganha com a vinda do Jean”. “Não estamos fazendo um ato de piedade. Pelo contrário, é um sujeito que pode mostrar seu talento por aqui e contribuir com a música brasileira. Mas, infelizmente, esbarramos nesse entrave”, argumenta o diretor.

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